terça-feira, fevereiro 12

Se fosse hoje calava-se


Se fosse hoje calava-se

Se fosse hoje não cairia na asneira de os tratar como amigos, nem de explicar coisa nenhuma. Julgou que estariam interessados, e agora uns voltam-lhe as costas, outros é ‘Olá, Alberto’, dão-lhe uma pancadinha no ombro e vão-se sentar noutra mesa. O único que de vez em quando ainda lhe faz companhia é o Fiúza, mas com esse só se pode falar da bola e do Benfica, porque avisa logo que a carestia, a política e as doenças não lhe interessam, que quando tiver de morrer morre.
Tudo começou vai fazer dois anos em Setembro. O afilhado tinha vindo almoçar, de repente aquela dor no peito e no braço esquerdo, depois a sufocar e a não dizer coisa com coisa, felizmente o 112 foi rápido, a ambulância a chegar ao hospital quando lhe deu o primeiro ataque. Os médicos acudiram-lhe logo, foi a sua salvação, depois tinha andado uns meses a revalidar, a fazer fisioterapia, o cardiologista achava-o muito melhor, ele próprio sentia a diferença, graças a Deus o pior tinha passado.
Ao café vinham uns quantos que também sofriam do coração, alguns já tinham sido operados, nessa altura cada um falava do seu caso, era um conforto saber que Fulano e Sicrano conheciam os sintomas, tinham sofrido o mesmo calvário. E ainda hoje ali estariam em paz, não fosse a tolice da noite em que chegou  com a revista já aberta na página, a perguntar se conheciam a palavra e quem seria capaz de a dizer sem gaguejar. Acabaram às gargalhadas, porque tentavam e nenhum conseguia, ele próprio confessou que tinha passado um ror de tempo a ensaiar para a dizer de um só fôlego: - Desfibrilador!
Tivesse parado aí tudo continuaria igual, mas quis fazer de entendido, pôs-se a explicar que pelo que tinha lido na revista, muitos deles, talvez ele próprio, viessem a precisar de um des-fi-bri-la-dor, o aparelho que era implantado no peito e dava uns choques eléctricos cada vez que o coração ameaçasse falhar.
O perigo estava em o aparelho funcionar bem demais. Todos sabiam que ninguém gosta de morrer de repente, mas essa é o que muitos chamam uma morte santa, de um segundo para o outro e sem dores. Agora com o aparelho dentro do peito e sem o poder desligar, dizia a revista que era uma morte horrível, a asfixiar e num grande sofrimento.
Tinha sublinhado essa parte, ia lê-la quando o Cardoso se levantou e disse:
- Boa-noite a todos. Eu vou andando.
De repente puseram-se a falar do jogo e do Sporting, sem o olhar e como se não estivesse ali. Bem sabe que era para esconder o medo, mas não esperava aquilo.