Se fosse hoje calava-se
Se fosse hoje não cairia na asneira
de os tratar como amigos, nem de explicar coisa nenhuma. Julgou que estariam
interessados, e agora uns voltam-lhe as costas, outros é ‘Olá, Alberto’,
dão-lhe uma pancadinha no ombro e vão-se sentar noutra mesa. O único que de vez
em quando ainda lhe faz companhia é o Fiúza, mas com esse só se pode falar da
bola e do Benfica, porque avisa logo que a carestia, a política e as doenças não
lhe interessam, que quando tiver de morrer morre.
Tudo começou vai fazer dois anos em
Setembro. O afilhado tinha vindo almoçar, de repente aquela dor no peito e no
braço esquerdo, depois a sufocar e a não dizer coisa com coisa, felizmente o
112 foi rápido, a ambulância a chegar ao hospital quando lhe deu o primeiro
ataque. Os médicos acudiram-lhe logo, foi a sua salvação, depois tinha andado
uns meses a revalidar, a fazer fisioterapia, o cardiologista achava-o muito
melhor, ele próprio sentia a diferença, graças a Deus o pior tinha passado.
Ao café vinham uns quantos que também
sofriam do coração, alguns já tinham sido operados, nessa altura cada um falava
do seu caso, era um conforto saber que Fulano e Sicrano conheciam os sintomas,
tinham sofrido o mesmo calvário. E ainda hoje ali estariam em paz, não fosse a
tolice da noite em que chegou com a
revista já aberta na página, a perguntar se conheciam a palavra e quem seria
capaz de a dizer sem gaguejar. Acabaram às gargalhadas, porque tentavam e nenhum
conseguia, ele próprio confessou que tinha passado um ror de tempo a ensaiar
para a dizer de um só fôlego: - Desfibrilador!
Tivesse parado aí tudo continuaria
igual, mas quis fazer de entendido, pôs-se a explicar que pelo que tinha lido
na revista, muitos deles, talvez ele próprio, viessem a precisar de um des-fi-bri-la-dor,
o aparelho que era implantado no peito e dava uns choques eléctricos cada vez
que o coração ameaçasse falhar.
O perigo estava em o aparelho
funcionar bem demais. Todos sabiam que ninguém gosta de morrer de repente, mas
essa é o que muitos chamam uma morte santa, de um segundo para o outro e sem dores.
Agora com o aparelho dentro do peito e sem o poder desligar, dizia a revista
que era uma morte horrível, a asfixiar e num grande sofrimento.
Tinha sublinhado essa parte, ia
lê-la quando o Cardoso se levantou e disse:
- Boa-noite a todos. Eu vou andando.
De repente puseram-se a falar do
jogo e do Sporting, sem o olhar e como se não estivesse ali. Bem sabe que era
para esconder o medo, mas não esperava aquilo.