quarta-feira, abril 29

Tarde e más horas

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Estas coisas acontecem, surpreendem, assustam porque avisam da perda de memória e de involuntária ingratidão. Em 2011 alguém me ofereceu este retrato que hoje por acaso encontrei. É indesculpável, mas nada recordo da oferta ou de como ou quando a recebi.
Quererá o talentoso artista dar-se a conhecer ou haverá alguém ao corrente da minha ingratidão que me ajude a encontrá-lo?

Só vendo

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Na Holanda, porque o clima manda e se se mexem muito a produção do leite diminui, as vacas leiteiras ficam de quarentena nos estábulos, até que em certo dia de Maio os portões se abrem e elas correm e saltam nos prados, tresloucadas de se verem em liberdade. Tradicionais  como os festejos do Carnaval, são nesse momento as imagens da televisão a mostrar a alegria dos bovídeos.
Abrandaram ontem as regras da quarentena do vírus, o Ikea de Amesterdão reabriu e, salvo todo o respeito, contou quem lá esteve que só vendo se acreditava. Qual metro e meio?

terça-feira, abril 28

Foge deles

É de Maio de 2010, repete-se para os que irão embora assim que a cadeia abrir.

Nasceste entre montes, males e misérias, temeroso da escuridão. Aos poucos, sem saber como nem sequer porquê, foste afastando as sombras, descobriste a beleza e a grandeza que elas escondiam.
Quiseste mais, procuraste sem encontrar. Ignorante de que não se voa sem asas, confiaste que ventos de boa fortuna soprariam na direcção do sonho, um longe de beleza, justiça e paz.
Rota de fraguedos, remoinhos, despenhadeiros, erros de bússola, resistindo a ciclones contrários, sofrendo maleitas e malefícios. Jornada para um horizonte de miragem. Foste, eles ficaram. Tem cautela. Não deixes que te prendam.

segunda-feira, abril 27

Um passo atrás


“Se as coisas correrem mal vamos ter de dar um passo atrás”, curioso aviso do Primeiro Ministro, a pressupor que só os temos dado em frente e as coisas têm corrido bem. Ameaça supérflua, pois é sempre no nosso lombo e não no deles, a casta dos mandarins, que cai a bordoada. Todavia gesto simpático, não nos vá dar a ideia de dizer que não sabíamos e foi surpresa.

Também dos mandarins:  "741.407 multas desde que se decretó el estado de alarma por el coronavirus, hace poco más de 40 días."Aqui.

domingo, abril 26

O fato para o entêrro


A obrigação de ir ao entêrro justificava o fato escuro, tinha-o despendurado do roupeiro e ficara de boca aberta, a duvidar que lhe pertencesse, mas finalmente vestiu-o para ver se ainda  servia e parou a olhar o espelho, descrente que os anos o tivessem mudado de tal forma e que de tão abonado o fato fizesse dele um espantalho.
Fora de questão o dar-se em espectáculo ou que o julgassem menos respeitoso ao vê-lo aparecer desleixado como andava em casa, e ali ficara, certo que não iria experimentar os outros fatos, porque havia muito que os não tinha vestido, o resultado seria o mesmo.
Foi então que lhe ocorreu que com os regulamentos de agora talvez nem pudesse ir, os funerais são só para a família, e com um gesto de desânimo despendurou do roupeiro os outros que lá tinha, encheu com eles três sacos grandes dos do lixo.
Olhou para a roupa que restava, abriu uma gaveta aqui e ali, estranhando tantas camisas, gravatas, pares de sapatos de que não se lembrava, hesitante se devia guardar o preciso e dar ao resto igual destino, ao mesmo tempo a temer que se o fizesse talvez não parasse, pois há muito aprendeu como são supérfluas tantas coisas que o rodeiam, a ponto de por vezes se perguntar o sentido de uma existência como a sua, sem parentes próximos, os vizinhos gente que desconhece, os amigos espalhados por longe, tendo por magro conforto a rotina dos dias que se habituou a aceitar com uma passividade de penitenciário, indiferente se são de chuva ou sol.
Tem consciência de que nunca foi o que se chama um optimista, mas o destino também não lhe poupou contratempos e pode dar cartas em matéria de solidão. Contudo, por orgulho ou teimosia nunca virou a cara às dificuldades, nem vai cair na armadilha de deixar que o assustem com as ameaças e os perigos que dizem são de agora, mas pouco diferem dos que tem conhecido a vida inteira. Diferente e aterrador, o que a ele tira o sono é o mêdo, esse sim, que nestes últimos meses vê ir aumentando e, uma vez generalizado, de pouco precisa para dar razão ao provérbio homo homini lupus – o homem é um lobo para o seu semelhante.
Finge que não repara, mas nota-o quando vai ao supermercado, a maneira como uns o olham amedrontados, a ver nele a ameaça de um perigo mortal e outros se afastam com a pressa de quem teme uma bomba-relógio.
Este perigo há-de passar e outros hão-de aparecer, sempre assim foi, mas talvez a tragédia maior esteja no medo, que quando não pára de crescer torna impossível a vida em sociedade.