Quem quer sujar as mãos?
Se não me acautelo começo a
tirar conclusões, a rogar pragas sem saber quem de facto as merece, caio
naquela tristeza que nasce da impotência de descobrir soluções, e de ficar
ciente que nunca possuirei o poder que se atribui aos santos milagreiros. Trocando
isto em miúdos: há horas em que sinto raiva do mundo.
Primeiro foi uma demorada e
melancólica conversa com o Diogo, um daqueles homens que, vindos do nada, sobem
na vida a pulso e conseguem, se não a riqueza, pelo menos um desafogado
bem-estar. Um ano mais e vai fazer sessenta, há vinte e quatro que montou a
serralharia, emprega lá oito pessoas, profissionalmente acha-se realizado.
Também goza de boa saúde, jura que
se poderia considerar um homem feliz não fossem as dores de cabeça que lhe dão
os dois rapazes. Não que tenham defeitos ou vícios, ambos até tiraram cursos,
embora ele não compreenda bem quais, mas por muito que procurem e com ele a
meter empenhos, não encontram trabalho.
Quando sugeriu ao mais velho que
o ajudasse na oficina, o rapaz tomou a mal, respondeu que não era para isso que
tinha estudado. O mais novo aguentou lá um mês, mas disse que nunca mais, não tem
força para aquilo, queixou-se à mãe que nenhum sabão lavava as mãos gretadas e
a sujidade que se entranhara na pele.
- Lá estão – diz o Diogo,
tristonho, abanando a cabeça. – E a minha mulher é por eles, baba-se toda por
ter os filhos doutores.
Não comentei, mas mentalmente pus
aspas, pois me contaram que os seus “doutores” seguiram daqueles cursos em que,
com uma perna às costas, se recebe a aparência de um canudo.
Por vezes, quando se fala de
coincidências, acontece dizermos que nos parecem estranhas, misteriosas,
incríveis, mas a que se deu poucas horas depois da conversa com o bom Diogo é, na
minha ideia, daquelas que de pode chamar uma coincidência melancólica.
De volta a casa encontrei no
correio o semanário holandês Elsevier,
publicação que há anos leio de fio a pavio, e logo me surpreendeu o título da
capa: “Quem é que ainda quer sujar as mãos?” Ao lado está a fotografia de um
sorridente rapaz que, fica o leitor a saber, tem vinte e dois anos, tirou um
curso de asfaltador, com oito horas de trabalho diário ganha por semana mil euros
líquidos.
E agora? Vou criticar os filhos
“doutores” do meu amigo? Sentir pena pelo pai? Entristecer com a desigualdade
dos destinos? Queixar-me das pátrias que são madrastas? Enfurecer-me contra a
política e os governos? Lamentar aqueles que vivem na cegueira das aparências?