‘Tenho sofrido muito’
O Manuel tropeçou, torceu a
perna, o médico receitou-lhe um creme, ontem à tarde telefonou a dizer que não
aguenta, as dores são muitas, se calhar é coisa grave senão já tinha passado.
Desde Agosto de 2002, quando fez
a cesariana do Carlinhos, a Idalina nunca parou de sofrer, passa a vida no
hospital, e agora morrem-lhe as galinhas umas atrás das outras, está segura que
se não lhe envenenaram a ração só pode ser mau-olhado, pois não falta quem lhe
inveje o galinheiro.
É tópico para que não há
excepções, pois uns mais, outros menos, do berço ao momento do último suspiro
todos recebemos a parte de sofrimento que nos cabe. E como a dor não se mede
nem pesa, de nada adianta o ‘tenho sofrido muito’ que alguns debitam em choradinho,
como se por isso merecessem que o Presidente lhes fosse dar medalha.
Pode ser azar meu ou excesso de
sensibilidade ao fenómeno, mas desde que me conheço sempre me vi rodeado de
gente que excessivamente se queixa. E não falo dos que detalham as cefaleias,
as dores da coluna, ou como sentiram as pernas durante a longa espera no Centro
de Saúde, pois para esses automaticamente fecho os ouvidos. Pesam muito mais os
que me agarram pelo braço e exigem atenção exclusiva para o seu caso, seja ele
doença que os atacou, as complicadas cirurgias que fizeram, inimizade que suspeitam,
desconfortos da idade ou certezas de roubalheira.
Não duvido de que sofram, mas
por que carga de água tem de me caber a mim o papel de confidente, se a alguns
mal conheço e a outros preferia não conhecer? Digo-me então que é o destino,
cruz que me põem às costas, não há remédio senão carregá-la e manter boa cara.
Em dias de má sorte essa
intimidade do queixume não somente me estraga a boa disposição, como parece
tornar-me doentiamente sensível ao estendal de sofrimento debitado pelos
jornais e a televisão. Vem este dizer que sofre por só agora confessar aos pais
a sua homossexualidade; queixa-se outro por ainda não ter ido à Tailândia; a
pivô adoece quando encontra a colega que a traiu; a actriz tem chiliques quando
vê o novo amor do ex-marido.
Cada um sabe de si e da maneira como
lida com o incómodo, mas em certas alturas parece que se me desanda a cabeça.
Como não posso fazer mais, junto as mãos e recito a modos de prece: pelo amor
de quem lá têm, poupem-me a mim e ao semelhante as vossas queixas. Não corram à
televisão, não chamem o jornalista. Calem-se. Engulam. Nem pensem confessar-se
ao padre, porque bem pode ser que já nem ele próprio aguente.