terça-feira, fevereiro 12

Tenho sofrido muito



‘Tenho sofrido muito’

O Manuel tropeçou, torceu a perna, o médico receitou-lhe um creme, ontem à tarde telefonou a dizer que não aguenta, as dores são muitas, se calhar é coisa  grave senão já tinha passado.
Desde Agosto de 2002, quando fez a cesariana do Carlinhos, a Idalina nunca parou de sofrer, passa a vida no hospital, e agora morrem-lhe as galinhas umas atrás das outras, está segura que se não lhe envenenaram a ração só pode ser mau-olhado, pois não falta quem lhe inveje o galinheiro.

É tópico para que não há excepções, pois uns mais, outros menos, do berço ao momento do último suspiro todos recebemos a parte de sofrimento que nos cabe. E como a dor não se mede nem pesa, de nada adianta o ‘tenho sofrido muito’ que alguns debitam em choradinho, como se por isso merecessem que o Presidente lhes fosse dar medalha.
Pode ser azar meu ou excesso de sensibilidade ao fenómeno, mas desde que me conheço sempre me vi rodeado de gente que excessivamente se queixa. E não falo dos que detalham as cefaleias, as dores da coluna, ou como sentiram as pernas durante a longa espera no Centro de Saúde, pois para esses automaticamente fecho os ouvidos. Pesam muito mais os que me agarram pelo braço e exigem atenção exclusiva para o seu caso, seja ele doença que os atacou, as complicadas cirurgias que fizeram, inimizade que suspeitam, desconfortos da idade ou certezas de roubalheira.
Não duvido de que sofram, mas por que carga de água tem de me caber a mim o papel de confidente, se a alguns mal conheço e a outros preferia não conhecer? Digo-me então que é o destino, cruz que me põem às costas, não há remédio senão carregá-la e manter boa cara.
Em dias de má sorte essa intimidade do queixume não somente me estraga a boa disposição, como parece tornar-me doentiamente sensível ao estendal de sofrimento debitado pelos jornais e a televisão. Vem este dizer que sofre por só agora confessar aos pais a sua homossexualidade; queixa-se outro por ainda não ter ido à Tailândia; a pivô adoece quando encontra a colega que a traiu; a actriz tem chiliques quando vê o novo amor do ex-marido.
Cada um sabe de si e da maneira como lida com o incómodo, mas em certas alturas parece que se me desanda a cabeça. Como não posso fazer mais, junto as mãos e recito a modos de prece: pelo amor de quem lá têm, poupem-me a mim e ao semelhante as vossas queixas. Não corram à televisão, não chamem o jornalista. Calem-se. Engulam. Nem pensem confessar-se ao padre, porque bem pode ser que já nem ele próprio aguente.