terça-feira, fevereiro 12

O vulto do sobretudo


O vulto do sobretudo

­Bruxas? Fantasmas? Aparições?  Desde que se lembra sempre riu do sobrenatural, e até há cerca de meio ano pouco adiantava virem com relatos de mistérios ou milagres. A uns respondia irritado que dispensava que o incomodassem com tolices, sorria a outros, bondosamente irónico, no modo de quem tem paciência para aturar crianças, velhinhos, e simples do espírito.
Religião não era com ele, nem conseguia compreender bem o que significava ter fé, sentia desconforto quando um verdadeiro crente, exaltado, afirmava a certeza de haver Céu, Inferno e Purgatório, como se se tratasse de destinos de viagem interplanetária reservada para eleitos.
Continua incrédulo, porque não é de uma dia para o outro que se descartam certas convicções, mas a sua descrença do sobrenatural levou um sério abalo na noite em que de repente acordou e distinguiu um vulto aos pés da cama, a figura de um homem vestido à antiga com sobretudo e um chapéu de aba larga que lhe ensombrava as feições.
Conta que aquilo terá durado um, dois segundos, e embora não pudesse aperceber qualquer expressão no vulto, teve o sentimento de que o ambiente no quarto mudara, que parecia correr ali uma imperceptível aragem.
Achou bizarro, mas adormeceu, teria esquecido o caso não fosse o estar uma tarde à espera que o semáforo mudasse para verde e distinguir, entre as pessoas que no outro lado da avenida entravam no autocarro, um vulto em tudo idêntico ao da sua visão, inclusive o sobretudo fora de moda e o chapéu de aba larga a esconder-lhe o rosto.
Encolheu os ombros, sorriu do próprio espanto, teria continuado a sorrir se a pacatez da sua vida não tivesse, a partir desse dia, entrado num torvelinho de reviravoltas, dando-lhe ideia de que muito acontece fora da sua vontade e do seu poder.
Tem recebido inesperados, e de verdade tão incríveis benefícios, que já pouco o surpreende. Mais um escalão e será promovido ao topo da carreira. Atribuiram-lhe o maior prémio da sua especialidade. Tem um convite para ir ao Japão. Joga no Euromilhões, dizendo-se que não vai ser surpresa se lhe calhar uma fortuna.
No último domingo de Maio a família festejou o aniversário da sogra. Estavam umas cinquenta pessoas, e porque o ambiente era alegre e cordial, deu nas vistas que, de copo na mão, ele se tivesse afastado para o fundo do jardim.
Estranhando aquilo, Margarida aproximou-se, e ao tocar-lhe ficou assustada  com a expressão do marido. Mas maior susto teria se soubesse o que ele há meses espera do vulto do sobretudo.