O vulto do sobretudo
Bruxas?
Fantasmas? Aparições? Desde que se
lembra sempre riu do sobrenatural, e até há cerca de meio ano pouco adiantava
virem com relatos de mistérios ou milagres. A uns respondia irritado que dispensava
que o incomodassem com tolices, sorria a outros, bondosamente irónico, no modo
de quem tem paciência para aturar crianças, velhinhos, e simples do espírito.
Religião
não era com ele, nem conseguia compreender bem o que significava ter fé, sentia
desconforto quando um verdadeiro crente, exaltado, afirmava a certeza de haver
Céu, Inferno e Purgatório, como se se tratasse de destinos de viagem
interplanetária reservada para eleitos.
Continua
incrédulo, porque não é de uma dia para o outro que se descartam certas
convicções, mas a sua descrença do sobrenatural levou um sério abalo na noite
em que de repente acordou e distinguiu um vulto aos pés da cama, a figura de um
homem vestido à antiga com sobretudo e um chapéu de aba larga que lhe ensombrava
as feições.
Conta
que aquilo terá durado um, dois segundos, e embora não pudesse aperceber
qualquer expressão no vulto, teve o sentimento de que o ambiente no quarto mudara,
que parecia correr ali uma imperceptível aragem.
Achou
bizarro, mas adormeceu, teria esquecido o caso não fosse o estar uma tarde à
espera que o semáforo mudasse para verde e distinguir, entre as pessoas que no
outro lado da avenida entravam no autocarro, um vulto em tudo idêntico ao da
sua visão, inclusive o sobretudo fora de moda e o chapéu de aba larga a
esconder-lhe o rosto.
Encolheu
os ombros, sorriu do próprio espanto, teria continuado a sorrir se a pacatez da
sua vida não tivesse, a partir desse dia, entrado num torvelinho de
reviravoltas, dando-lhe ideia de que muito acontece fora da sua vontade e do
seu poder.
Tem
recebido inesperados, e de verdade tão incríveis benefícios, que já pouco o
surpreende. Mais um escalão e será promovido ao topo da carreira. Atribuiram-lhe
o maior prémio da sua especialidade. Tem um convite para ir ao Japão. Joga no
Euromilhões, dizendo-se que não vai ser surpresa se lhe calhar uma fortuna.
No
último domingo de Maio a família festejou o aniversário da sogra. Estavam umas
cinquenta pessoas, e porque o ambiente era alegre e cordial, deu nas vistas
que, de copo na mão, ele se tivesse afastado para o fundo do jardim.
Estranhando
aquilo, Margarida aproximou-se, e ao tocar-lhe ficou assustada com a expressão do marido. Mas maior susto
teria se soubesse o que ele há meses espera do vulto do sobretudo.