domingo, junho 30

Fitas e borlas

Para muita gente, muita mesmo, o escrever não é trabalho, é coisa para a qual alguns têm jeito, fazem por gosto, até apreciam que se lhes reconheça a habilidade.
Imagino que com outros aconteça igual, mas por mim falo. Amizade, imposição, chantagem, desavergonhadas pressões, abuso de simpatia, de confiança, parentesco, pedinchice, ao longo de tempo perdi a conta dos textos que escrevi de borla.
Convites, folhetos, boletins de paróquia, comemorações, discursos, pareceres, resenhas, requerimentos, histórias para esta e aquela festividade, anúncios de romaria. De vez em quando recuso firme, pois não me vejo a recomendar um restaurante. Também gosto de ver o interlocutor de cara à banda, quando ele espera ter de graça a satisfação do pedido e lhe anuncio o preço. Alguns, de verdade ingénuos, ficam de boca aberta, realmente não faziam ideia de que a escrita, coisa de que toda a gente é capaz, implicasse pagamento. Mas em particular divertem-me os que querem regatear, pedem desconto, consideram extorsão qualquer tarifa que não seja a mesquinhice que propõem.
Esses aprenderiam alguma coisa com a história verdadeira, passada há muitos anos com uma dama da High Society  de Nova Iorque, que num fim de tarde, as lojas a fechar, se deu conta de não ter chapéu apropriado para a cerimónia a que ia assistir.
Correu a um costureiro, então jovem, mas já de fama, explicou-lhe o aperto, e ele, olhando  como a senhora estava vestida, pegou numas fitas de seda, enrolou-as, pôs-lhas na cabeça e aproximou o espelho.
Extasiou-se a senhora. Aquilo era criação genial, espectacular, uma beleza de incrível simplicidade. Admirou-se uma vez mais, nem sequer tinha coragem de lhe mexer. Perguntou quanto devia.
O costureiro nomeou o preço, e a madame, em choque, esquecida das boas-maneiras, deu um berro. Impensável! Roubalheira! Semelhante importância por duas fitas?
Então o jovem costureiro, muito ciente do seu talento e com elegância no modo, pegou no chapéu, desfê-lo, entregou as fitas à senhora:
- Pode levar. As fitas são de graça,

sábado, junho 29

Herdeiros


Mandela morre, não morre, o presidente Obama vai de visita, não vai, cá fora o povo reza e dança à boa maneira Zulu, as televisões contam também da zaragata na família do moribundo.
Uns filhos querem-no enterrado onde nasceu, outros onde se criou, estes exigem os extensos vinhedos da House of Mandela, aqueles querem ser os únicos a explorar a marca Mandela.
História de todos os tempos. Fora que possuir um lugar de peregrinação, indústria de relíquias e souvenirs, e o herói num mausoléu, talvez envidraçado, acorda miragens de Fátima, Lourdes, Graceland, Disneyland, por menos começa a escorrer água da boca,
Discutimos o caso, e ela, um pouco afastada não toma parte da conversa. Falar de herdeiros é assunto doloroso, tabu, recorda-lhe a altura em que os irmãos, por natureza sempre desavindos, se concertaram para arranjar quem a liquidasse e ficarem eles com a herança. E não eram vinhedos, marcas comerciais, Fátimas  ou mausoléus o que estava em jogo, mas umas terras que, por ano, pagam quarenta e dois euros de contribuição predial.

quinta-feira, junho 27

Linhagens


No seu lugar calávamo-nos, mas a raiva que o consome é forte, o desespero tão grande, que o deixamos desabafar, mudos e quietos como se fôssemos público num teatro, e ele no palco representasse uma tragédia.
Sofreu, perdeu, sente-se traído, mas o seu ódio não vai para o desgoverno, a corrupção, os podres da justiça, ou a falta de moral. O rancor que o afoga causam-no "esses pelintras que nada tinham, esses badamecos que nem a cara lavavam e agora comem de faca e garfo!"
Contorce o rosto numa gargalhada, aponta com o dedo a massa invisível. "Labregos, é que eles são, sempre foram, hão-de ficar! E os filhos com estudos, estudos? Julgam que saíram da lama? Nunca! É lá que pertencem."
Barafusta, grita, agita-se, descontrolado, irracional, o medo que temos é de vê-lo numa síncope. Ouvimo-lo sem replicar, na esperança de que aos poucos vá caindo em si, se aperceba da inutilidade da agitação. Depois assim acontece, mas fica no ar um acanhamento, o desconforto de nos sabermos cada um com os seus pensamentos, involuntária e secretamente  recordando a "linhagem" do nosso amigo.
É isso que a ele e muitos salva: a falta de memória e a recusa de se verem ao espelho.

quarta-feira, junho 26

Garantias


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Em 1793, no decurso do chamado “Festival da Razão”, a igreja de Nossa Senhora de Paris transformada para o propósito em sala de reuniões, um deputado estrangeiro da Comuna, de seu nome Clootz, declarou :
“Um crente é um animal depravado. Assemelha-se àqueles que são esquartejados e assados para proveito dos comerciantes e dos magarefes”.
Enfurecido, Robespierre cortou-lhe a palavra, dizendo: “Não podemos garantir pão ao povo. Não lhe podemos garantir justiça. Será que lhe devemos tirar também a esperança?”
Os pequenos Robespierres do nosso tempo garantem tudo: pão, justiça, esperança, reforma, férias e bem-estar na velhice.

terça-feira, junho 25

O livro

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”Coisa impressionante, o livro. Um objecto achatado, extraído de uma árvore, com partes flexíveis onde se encontra impressa uma quantidade de curiosos rabiscos negros. Mas uma olhadela que lhe dês basta para que penetres noutra mente, talvez a de alguém que há milhares de anos faleceu. Claramente, silenciosamente, através dos milénios, dentro da tua cabeça um autor dirige-se a ti. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, unindo gente que nunca se conheceu, cidadãos de épocas remotas. Os livros quebram as algemas do tempo. Um livro é prova de que os humanos são capazes de fazer milagres”- Carl Sagan

segunda-feira, junho 24

Adivinhos

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Em bruxas só os simples acreditam, e as pitonisas vivem escondidas na Mitologia, mas muito se lhes assemelham os comentadores políticos.
Inchados e fátuos, como se tudo soubessem e adivinhassem o resto lendo nos astros, explicam-nos eles o que o presidente tem na ideia, o que os ministros preparavam mas esqueceram, o que presidente Obama devia ter dito à chanceler da Alemanha, o que a Rússia anda a conversar com a China. Entoaram loas ao engrandecimento e enriquecimento do Brasil, dizem agora que há muito sabiam as razões porque nele seriam abaladas a "Ordem e Progresso".
Aborrecida, cansativa gente, a papaguear horas, convencida de estar no segredo dos deuses. E então as vozes. Umas de tom paternalista, outras em modo de homilia, algumas severas, a avisar que a posse da verdade não admite discordâncias nem oposições.
Por hábito antigo acordo às seis e ligo o rádio. Esta manhã, às seis e meia estava KO e desliguei, enfartado para o resto do dia, moído de crises, revoluções e adivinhos.

sábado, junho 22

Não há Feira, mas há festa

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Não esqueça: logo à tarde vá à Avenida dos Aliados e dê o seu abraço. Se também der um por mim, agradeço.

sexta-feira, junho 21

Ao acordar


Só por si, o existir dá uma trabalheira desproporcionada. Mesmo depois de noite bem dormida, mal se abrem os olhos é logo diante deles uma exagerada lista de rotinas e obrigações, tarefas, urgências, telefonemas, mails, encontros, promessas a cumprir, visitas a fazer, gente a aturar.
Nada de estranho, pois, que ao abri-los, e tomando consciência do que nos espera, a reacção natural seja de cerrá-los, virar para o outro lado, cobrir a cabeça com o edredão, e tentar o regresso ao descanso que o sono dá.
Parece masoquismo, tirarmo-nos do quente e irmos enfrentar o dia, sabendo de antemão que serão menos as alegrias que os aborrecimentos, e o ganho talvez não cubra o gasto. Mas enfim, cá nos puseram, por cá andamos, vamos indo e tropeçando, o remédio é aguentar. Mas que custa, custa.

quinta-feira, junho 20

"O Buraco" em Estevais


Dum lado a encosta é quase a pique, mas tempo houve em que por ali andou gente, pois entre silvedos e azevinhos aparece uma ou outra amendoeira, o tronco retorcido de oliveiras seculares. O matagal há muito tomou conta e estende-se irregular, agreste, um cobertor de sombria verdura.
A ribeira, lá no fundo, não se vê, só apurando o ouvido se lhe distingue o sussurro  por entre o chilrear da passarada.
O lado oposto é de espectáculo. Fragas negras, amontoadas na vertical, criando paredões e torres, dando ideia de fortaleza inacabada. Tudo inacessível, gigantesco, estranho, inóspito, ameaçador. Nunca ali tocou pé ou mão, o que arriscasse não sairia vivo, em lugar assim só asa de abutre ou coleio de serpente.
Assombra pela feiura e o negrume, contam os antigos que sempre foi sítio de feitiçarias, em certas noites aparece lá a "Vergadinha", uma abetarda com focinho de cão, asas pretas e olhos amarelos, que ao voar chora como criança.

quarta-feira, junho 19

A prática

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Talvez isto sirva a um ou outro jovem que leva a tarefa  a sério, mas a muitos parecerá tempo perdido, coisa fatigante, que de nada adianta nem faz contrapeso à sublime inspiração.
Também já ouvi que é matéria despicienda nos cursos de Escrita Criativa.
Assim será, mas deste modo trabalho eu, e um sem-número de horas gasto a corrigir, a limpar, a evitar rimas e repetições. Em si, a escrita e o enredo não são o que mais tempo leva, pois boa porção desse trabalho fá-lo a cabeça a horas mortas. O que desespera e envelhece é a descoberta das asneiras escritas, das palavras repetidas, das rimas escusadas, do mau diálogo.
Antigamente cansava-se nisso a memória, hoje o computador é de grande ajuda, mas não há que confiar. Dava por pronto o meu último livro, e à cautela deixei-o em repouso coisa de uma semana. Na leitura seguinte caíram-me os queixos, tantas eram as consonâncias e as repetições. Para controlo fiz a lista que segue, fui-me a ajeitar, a rever, mais de um mês gastei nesse trabalho, e mesmo assim estou certo que ainda deixei lá que podar.
 
Abrir Absort Acarinh Acen (ar) Advogado Afastar Agora Algo Algum  Altura Amig Aos poucos Apenas Às vezes Assalt Assim Assust – tou-se; ar  Atordoa  Calar (calad)  Capaz  Carinh  Cena  Cerra (r)  Certeza  Choque  Começ  Como(que) se   Compar(ar)  Conta (dar)  Contudo  Conversa Corta(r)  Deix (ar)  Depois  Descobr (ir)  Deter (deteve-se)  Determinar  Então  Entusiasmo (ar)  Escondendo  Estranh o/a  Estrangeiro  Exager (ar)  Extraordin  Feliz  Ficar  Finalmente  Fingi (r)  Fixo  Fum (ar)  Genuíno  Gesto  Incapaz  Incomod  (incómodo)  Inquiet  Insegur  Intens  Já  Jeito  Lembrança  Logo  Mais  Mal  Malta  Mas  Memória  Mesa  Modo  Momento  Motivo  Muito  Novo  Ouve Pacto  Parec (er)  Pergunt  Perturbar  Pois  Pouc  Preso  Primeir  Pront  Próprio  Prova  Provoca  Quase  Rapaz  Razão/Razões  Record(ar) (Recordação) Rememor(ando) Respira Risco Sempre  Sentia  Sentimento Sentir Silêncio  Só  Súbito  Surpres o/a  Sussurr  Talvez  Também  Tão  Tarde  Tempo  Tenso/a  Tentar  Tentou  Verdade  Vez

terça-feira, junho 18

Estacionamento

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Não justifica fugir da cidade, mas ao cair da noite sempre é mais romântico do que um estacionamento.


De novo: "O vestido amarelo"

Diz que só vagamente recorda o texto e esqueceu título, mas gostava de voltar a lê-lo. Informe-se então que foi publicado neste blogue em 12.08.2011.

Conta que tinha sido impulso tolo. Fazia pouco que usava o cabelo em rabo de cavalo, revelando uma nuca que ele pretendia não ver, mas o disturbava com um estranho poder de atracção. De facto bonita, elegante, com aquele ar seguro de si que poucos têm e se lhes inveja, porque os coloca entre os seres de excepção.
Não conseguia esquecer o momento e os detalhes, menos ainda o choque do que lhe leu nos olhos.
Tinha batido uma pancada ligeira na porta do gabinete e entrado, ela sem se voltar fez um aceno, continuou debruçada sobre o computador. A nuca, irreal, sedosa, um mármore translúcido.
Aproximou-se vagaroso, controlando a respiração, as mãos presas atrás das costas, ciente do perigo e da urgência de se reter para que o inevitável não acontecesse. Debruçou-se também para ver o que ela lia, os rostos muito próximos, quase a tocar-se. E então, como se qualquer coisa quebrasse dentro de si, as mãos desligaram-se, pousaram docemente nos ombros, beijou-lhe a nuca.
A imobilidade fê-lo deter-se, retesou-se-lhe o corpo quando a cadeira girou, os olhos presos nos seus, ela muito serena:
- Gosto de ti, mas não repitas.

Se procurasse na agenda saberia ao certo, a festa deve ter sido meses depois, já Verão.
Noite de calor, beautifull people, boa música. No jardim tinham posto um estrado, mas os outros foram-se afastando e ela dançava sozinha, estonteante de beleza e cio, o corpo moldado por um extraordinário vestido de seda amarela, muito justo, muito curto.
A imagem permanecera. Conseguia aparentar indiferença, mostrar-se bom camarada, mas quando se encontravam involuntariamente recordava o momento, o erotismo de que ela era capaz, o magnetismo que possuía.
Uma tarde, no café, fingindo que a recordação lhe vinha por acaso, disse que gostara muito de tê-la visto dançar. E o vestido era mesmo chique. Ela sorriu, mudou de assunto, mas num repente perguntou-lhe se no dia seguinte estava livre. Se estava, convidava-o para jantar em casa.

A gente ouve, deixa-o falar e diz-se que deve ser de algum filme. Ou distúrbio da cabeça,  excesso de imaginação.
Tinham jantado, conversado, bebido dentro dos limites e, como duas crianças,  rido de coisas à toa. Se os corpos se tocaram foi por acaso e sem consequências. Horas depois ela desculpou-se, demorou, quando a viu entrar vinha resplendente como na outra noite, com o mesmo vestido.
- Disse-me que ficasse sentado. Não me mexesse. Pôs música e dançou para mim! Queres crer? Um sonho! Dançou para mim!

A história pode findar aqui, mas talvez você queira acrescentar o capítulo que em sua opinião falta. Mas não os leve para a cama. Seria banal.


segunda-feira, junho 17

Família

Na minha família sou o único que fala Português. Com a mulher, filhas, genros, netos, falo outra língua, e o que eles de mim lêem é em tradução. Há depois o facto de que em Portugal só me resta um ou outro vago parente, daqueles em quarta ou quinta geração, prestos a apertar os laços quando me vêem o nome no jornal. De modo que, quando partir, só em terra estranha deixarei semente, e por cá apenas a ossada, que espero enterrem no mesmo cemitério onde estão as daqueles donde venho. Também é provável que durante algum tempo, aqui e ali se veja um livro meu, e possivelmente ficará lembrança num ou noutro que me deu amizade.
A quem tem vida mais conforme ao geral, parecerá isto pouco, bizarro, talvez mesmo soturno, e certamente estranhará ver-me resignado com tão particular destino.
Resignado? O caso é que, além de satisfeito, raro passa dia que não me regozije com ele.
Poderia ter sido melhor? Excepcional? Um dos que fica nos anais? Talvez. Mas provavelmente em nenhum desses encontraria a menina "de ao pé de Pombal", que me foi visitar na Feira do Livro, em Lisboa e, os olhos brilhantes de entusiasmo, disse palavras que não esqueço. Ou o Vítor, chegado de tão longe para me falar um minuto. O senhor que, emocionado, me agradeceu ter escrito Montedor, que lera em 1968 e era a história dos seus sofrimentos e desilusões. O jovem que me desejou felicidades.
Surpreso e grato, encontro nesses a família que cá não tinha.

 

domingo, junho 16

A nossa língua

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É mais que gosto ou apreço, é amor de verdade e misterioso sentimento, o que me dá a nossa língua. Demoro em certas palavras a saboreá-las, encanta-me a melodia, o significado, pergunto-me que feitiço se esconde nelas, capazes como são de tanto exprimir, outras vezes negando o entendimento ou, travessas como crianças, fugindo quando as chamo, aparecendo no lugar errado.
E que grande tesouro é! Quantas maravilhas esconde! Que pena dá que dela saibamos tão pouco, mais pena ainda de ver como alguns a desleixam e desprezam, achando fino deitar mão a estrangeirismos, inventando modismos que são outros tantos sinais de debilidade mental.
Porque a alguns falta o ritmo, a outros o ouvido, mostram por vezes os literatos alguma falta de jeito na dança com as palavras. E enriquecer-lhes o significado é dado a poucos. Nesse particular surpreende como são por vezes os simples mais capazes de seguir o filão e encontrar nele o diamante.
Contava-me um médico que, muitos anos atrás, tendo começado a trabalhar para as bandas de Monção, lhe aparecera um dia um paciente que, a modos de queixa, disse:
- Vou pró campo e é só vento!
Depois de alguma conversa descobriu o jovem clínico que o lavrador, para quem a leira era a única retrete, ao querer aliviar as entranhas só lhe saíam peidos.
O meu exemplo é de anteontem. Adoeceu o vizinho, mas o bichanar das mulheres não adianta para saber se é grave e necessária a ajuda. À volta doutros afazeres descubro que aquele que o levou à urgência não diz mais que "Ficou lá. Puseram-no a soro".
Retorno às mulheres. Pergunto, mas de nada adianta, com ar de inquisidor agarro pelo braço a que me parece mais assustada, ela cede:
- Há três dias que não fecha!
- Não fecha?
- Há três dias que não fecha!
Demorou, mas à força de circunlóquios e apontando vagamente lugares da anatomia, lá conseguiu explicar que o vizinho há três dias andava com tal soltura que não saía da retrete.
Maravilhoso instrumento, a língua portuguesa.


sábado, junho 15

A hora de mudança

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Por ter passado da idade e gostar doutros entreténs, desculpa a todos, mas a televisão que vejo é pouca, em geral ao acaso do almoço no restaurante, onde sabiamente a entronizaram.
Fabriqueta de ilusões e pseudonotícias, trégua para casais desavindos, passatempo dos solitários, deita-se-lhe um olhar e a atenção fugaz regista mais um crime, outro acidente com carros em frangalhos, o assalto ao idoso, o fogo, a inundação.
Repete-se a garfada, mastiga-se, bebe-se um gole. O fogo continua a arder, o idoso a queixar-se, a inundação a subir. Nos minutos de futebol há um recolhimento de fiéis na igreja, que logo diminui à mostra dos políticos a debater no parlamento.
Para mim o momento de adiar a sobremesa. Porque aquilo é teatro, muito mau teatro, com gestos, carantonhas, remoques que num salão de festas poriam a assistência aos urros e às patadas.
Teatro do absurdo, mas por isso mesmo de excepção e valor, pois eles nos representam, neles delegámos. Sem interesse o que gritam, inconsequente o que barafustam, fingidas as raivas, roscofe as concordâncias e oposições, contudo é naquele triste espectáculo que nos deveríamos rever e interrogarmo-nos porque aceitamos ser assim, e porque razão tarda a hora de mudança.

 

 

 

sexta-feira, junho 14

Na mó de baixo

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Outros há, de certeza, com afazeres diferentes e idades mais conformes ao optimismo, mas nos últimos dias, os que lá do alto nos espiam e regem, têm-se particularmente divertido, não a pôr-me doente, mas a deixar-me num cansaço em que todo o esforço parece demasia, toda a obrigação um pesadelo, cada ritual uma ladeira a subir.
Depois, embora não seja invejoso por natureza, e saiba o modesto lugar que me cabe, não abro jornal onde não chovam ditirambos, nas revistas que leio tudo são estupendos sucessos, formidáveis realizações, talentos geniais, putos e meninas – a gramática aceitaria, mas a decência impede – que mal saídos dos cueiros deixam o mundo de boca aberta, e para isso lhes bastam pinotes, dois traques e gritaria .
Viro-me então para os deuses e pergunto: que raio têm eles que a nós, a mim e tantos milhões, foi negado? Rezam com mais fé? Queimam melhor incenso? Nasceram em signo ascendente? Conhecem o mistério de Fátima?
Resumindo: vai para uma semana que, de corpo e espírito, ando na mó de baixo. E como se não bastasse, no passado mês e meio fui a quatro enterros.
A impressão que tenho é de que, sentadas em confortáveis nuvens, as divindades se piscam o olho, assustam-me e, como se não bastasse, apontam-me, gozam a molestar-me com tanta fama à minha volta.

quinta-feira, junho 13

Contrição

Muito me arrependo, mas a asneira feita de nada adianta a contrição, nem o tempo que se me vai a magicar como devia ter dito, devia ter feito, porque razão abri a boca, que impulso me empurra para a má figura.
Digo-me que é feitio com que nasci, erro dos que me fabricaram, brincadeira do Destino, contudo não é isso que me salva das consequências de me ver actor, em cenas onde melhor e mais seguro estaria no papel de comparsa.
Há os felizes, conheço bastantes e invejo-os, que mantêm a atitude certa, dizem as palavras que se espera, são comedidos nas opiniões, nunca dão passo em falso. E por tão pouco não irei levantar questões teológicas, mas a interrogação permanece: como é que uns parecem ir sempre pelo caminho direito, e outros, como eu, vão aos ziguezagues?

quarta-feira, junho 12

Birras

Caro João
Naboukov, que sabia de escrita, torcia o nariz a Finnegans Wake. Há mais, mas a maioria cala-se – que é a linguagem da torre de marfim. Gente de Dublin e Retrato do Artista, ambos bons, mas nada de especial como personagens, história, ou arte de contar.
Li Ulysses, por volta dos vinte e pouco, depois já passados os quarenta. Duas vezes, leitura espaçada, com muito esforço, a segunda foi a mais proveitosa. Anos depois, em voz alta, li vários capítulos ao azar. E de facto a musicalidade surpreendeu-me. Isso foi há mais de cinquenta anos, não voltei nem volto a pegar-lhe.
Vergonha não senti. Descobri, sim, que Joyce tinha um saber da Literatura, dos assuntos da Igreja e da Mitologia, que estavam, e estariam, fora do meu alcance. Finnegans Wake não me dizia nada, pus de parte. No que respeita a Crítica, de muito novo arranjei um "faro" que me protege dos seus pontífices, e ajuda a separar o trigo do jóio.
Cânone? Assunto de eleitos, quando conversam de torre para torre.
Finnegans Wake é caso extremo, mas há muito que me irrita: Neo-Realismo, Nouveau Roman. Se recordo a fama que essa gente teve, e como estão literariamente defuntos, diverte-me que depois de tomar  conhecimento dessas obras alegremente as pus de lado.
Um livro com que (quase) toda a gente se embasbaca, compreende, e com ele se voa para  regiões superiores do espírito, mas não consigo ler até ao fim: Moby Dick. O que prova que a culpa não é do livro, mas do leitor: não posso ter razão contra os milhões de anónimos e os grandes espíritos que o reverenciam.

sábado, junho 8

A Feira do Livro no Porto em 2013

Este ano não há, mas

O FIM DA FEIRA NÃO É O FIM DA FESTA
                                                                                                                                   
Concordem: um aviãozinho a fazer piruetas e a deitar fumo colorido, um futebol, uma corrida de atletas, um comício, uma noite de São João, tudo isso conta para distrair e repousar.
Sabemo-lo nós, sabem-no os autarcas do Porto que, diligentes no descanso do espírito e na necessidade de divertimento dos portuenses, se mostram fiéis seguidores do Panem et Circenses dos imperadores romanos. O pão, infelizmente, terá cada um de ganhar o seu, mas jogos, festas, divertimentos, é com eles.
E assim, embora de mau grado, me vejo a concordar que a Câmara do Porto não apoie a Feira do Livro.
Raro anda ali multidão para encher uma bancada. Não se ouvem tambores, trombetas, castanholas ou apitos, foguete nenhum. Em vez de se agitar em festa, aquela gente ora caminha com o nariz em livros, ora demora nos escaparates, olhando como em transe. É povo que parece não ter aprendido a dar vivas, nem a agitar bandeiras, em vez de dar patadas de entusiasmo move-se com a calma de quem visita a igreja.
Será boato, mas já ouvi que boa porção dos que a visitam são atreitos a pensar pela própria cabeça e gostam de aprender, qualidades que levam à inquietação e daí ao descontentamento,  à rebeldia.

Este era o começo. Ia-me inclinando para o jocoso, mas há risco em ser tomado à letra,  melhor é entrar no assunto e, com simplicidade e respeito, inquirir dos senhores autarcas se, de facto, os cofres da edilidade portuense se encontram depenados a ponto de não haver neles a "migalha" com que contribuíam para Feira.
Acho duvidoso que assim seja. Antes quero crer que os livros, a leitura, a escrita, nem peso-pluma são nas decisões do município, devem-lhe parecer carolice de uns quantos, e que esses quantos melhor emprego dariam ao tempo indo ver aviõezinhos a fumegar.
Tanto como desprezo pela legítima vontade, e o direito dos cidadãos, em prosseguir actividades que lhes aumentem o conhecimento e enriqueçam o intelecto, semelhante atitude denota uma soberba de mandões à moda antiga, a do tempo em que uns poucos riscavam e o resto calava.
Calados já não ficamos, mas no mais pouco mudou, que para mal nosso a democracia ainda vai de muletas e a prepotência continua enraizada. Com o estafado argumento de que não há dinheiro, decide o autarca que a Feira do Livro não se realiza. Mas mostra ele as contas? Os cálculos que fez? Prova aos cidadãos a justeza do que decidiu?
Não mostra nem prova. Decide com arrogância ao gosto da própria vontade, ignorando o tempo em que vive. Porque poderá ter sido eleito pela maioria de uns, mas é sua obrigação atender ao interesse geral.
E as Feiras do Livro não interessam apenas a uns quantos carolas que gostam de ler, mas a todos os que anseiam por algo mais que o superficial, o passageiro.  Interessam sobretudo aos jovens, para quem os livros são janela aberta para o conhecimento, a cidadania, a esperança de viverem numa sociedade harmoniosa nos direitos, nos deveres, no respeito do que contribui para o bem comum. Não se vê de imediato, mas as Feiras do Livro contribuem.

quinta-feira, junho 6

O "Amêndoa"

Para uns quantos não será surpresa, que há muito a conhecem. Outros virarão a cara, porque a vergonha e o medo, sobretudo o medo, lhes manchou a família, e o ferrete perdura. Passou-se perto daqui, e talvez pelo feitiço da narrativa, enquanto ma contavam “vivi” as cenas.
De nome Simão, por alcunha o “Amêndoa” - ai de quem lho chamasse - forçudo, violento de carácter, a entrar na meia idade, juntava à pouca lavoura um negociozito de peleiro e muares.
A sociedade que mantinha com este e aquele cigano, ora lhe dava lucro, ora fazia com que o olhassem de revés, a filha mais nova ficara para tia por se ter amorachado de um Chico Tendeiro, nado e criado pròs lados de Sevilha, que ninguém sabia onde era, e alguns diziam ficar perto de Escalhão.
Assistia-o nas andanças um Franklin, quase nos trinta, de bons músculos, pouca cabeça, assim baptizado por simpatia do progenitor que, sonhando ir para a América, quisera atrair a sorte fazendo-o homónimo do presidente.
Uma tarde, estando no alpendre a apurar as contas do que pensava ter ganho na feira, despendurou o “Amêndoa” o colete e em vão procurou a bolsa.
Tinham-lha roubado. O ladrão, julgando-se esperto, voltara a prender o alfinete de segurança com que fechava o bolso.
Repensou, reviu por onde tinha andado, de quem tinha recebido, as contas que saldara, ficou o Franklin como único suspeito. Problema era levá-lo a confessar, e fazê-lo depressa, não fosse dar às de Vila Diogo, que nunca mais lhe poriam a vista em cima. Fora que os duzentos e vinte sete contos era soma que, perdida, nem em dez anos voltaria a arrebanhar.
Manhã cedo, pontual, veio o Franklin dar as boas-horas, e o “Amêndoa”, replicando sorridente, apontou-lhe uns fardos de pele. Levasse-os para o armazém, que estando ao sol endureciam. Diligente, pegou-lhes o rapaz às costas, foi ele adiante para abrir a porta, fechou-a de seguida.
- Roubaste-me a carteira.
Grande pasmo do acusado, malvado mas carinha de anjo. Que não senhor. Ia ele agora fazer semelhante coisa. De mais a mais a tão bom patrão. E vá de jurar, pedir o testemunho da divindade, conseguiu mesmo espremer uma lágrima.
Ao modo de quem convida para uma dança, o “Amêndoa” enfiou-lhe o braço, e assim foram até ao fundo do armazém, onde a claridade era pouca. Só quando o patrão lha apontou é que o Franklin deu pela corda que, grossa como um punho, pendia da trave.
Tentou fugir, mas o braço era de ferro e, um empurrão mais, enfiou-lhe o laço na cabeça.
Que remédio, senão confessar. O “Amêndoa” tinha explicado que doutro modo puxava a corda, o povo iria dizer que não era o primeiro que se enforcava e ninguém sabia porquê.
Outra confissão fez ainda: já tinha gasto trinta mil réis na taberna. Em vinho e no que perdera às cartas.
Perdoou-lhos o “Amêndoa”, em desconto do susto.