A CONTAGEM DAS BÊNÇÃOS
A religião e a sabedoria mandam,
ou pelo menos aconselham, que nas ocasiões de desalento se contem as bênçãos
que nos calham, a começar pelas que
parecem triviais ou as que julgamos merecer pelo simples facto de nos
terem posto neste mundo.
O que os sacerdotes e os
filósofos aparentam achar irrelevante, é que mesmo para essa operação simples
da contagem das bênçãos nunca ninguém teve tempo, ocupados como todos andamos a
fintar os reveses do Destino, a malandragem dos semelhantes, os perigos que nos
esperam ao atravessar a rua na passadeira, ao comermos camarões estragados, ou quando
vamos ao Multibanco levantar vinte euros e nos pifam a carteira.
Embora tenha atingido há muito
aquilo que o senhor Cardoso, homem que gosta de falar caro, chama “uma idade
provecta”, a Mariazinha mantém em permanência na face um sorriso de
bem-aventurança, a que de certeza vai gozar no Céu quando – de novo palavras do
senhor Cardoso – “soar a sua hora derradeira”.
Além de cronista fiel da
história da aldeia, desde o que aconteceu no tempo dos seus trisavós, ao desastre
que a Leopoldina teve o mês passado em Celorico e onde quase ia morrendo, ela é
também uma espécie de notário com excepcional memória, capaz de mencionar sem
falha os nomes e os parentescos de várias gerações.
Todavia, aquilo em que
verdadeiramente se distingue é o modo como responde a quem lhe pergunta o
motivo do seu permanente sorriso e da boa disposição.
Se por acaso está sentada,
martela o chão com a bengala à medida que vai nomeando as bênçãos de que goza,
das quais considera primeira e maior a de nunca ter conhecido homem.
A segunda é a de uma saúde de
ferro. Também se orgulha de ser mais moderna do que essas serigaitas que andam
por aí a apregoar dietas e verduras, pois logo de pequenina enjoou a carne. Lembra-se
que a comeu há mais de setenta anos, no baptizado do Felisberto, deram-lhe
vómitos, nunca lhe voltou a tocar.
Terceira bênção: desde que se
conhece só bebe água de nascente, que a mal cheirosa da torneira nem que lhe
pagassem.
Descansa então a bengala, parece
que vai anunciar a bênção seguinte, mas de repente entristece, só os de fora
ignoram que não há mais, a conversa finda ali.
Dá-se o caso da Mariazinha ter conhecido
homem, o Nicolau, o que lhe fez o mal. Varreu-o da memória e chamaria mentiroso
ao que se atrevesse a recordar-lho. Só que ninguém se atreve. Por respeito,
pela certeza de sermos menos abençoados do que ela, mas também porque na
Mariazinha há um pouco de todos nós.