domingo, abril 30

Mil e uma noites

 

Nenhum dos seus amigos, e somos muitos, se queixará do modo com que o Taveira recorda gente que conheceu, porque nessas ocasiões como que se dá nele uma transformação radical. O   proprietário da Farmácia Caldas surge como grande actor, enfeitiça quem o ouve com arte comparável à que dizem ter os árabes que contam as histórias de Mil e Uma Noites.

Ao jantar do passado domingo quis ele saber se algum de nós se recordava da Denise.

Encolhemos os ombros, dando-lhe assim oportunidade para brilhar no papel costumeiro de prima donna - masculina.

Poderia repetir a narrativa, mas falta-me talento para testemunhar com exactidão, tãopouco seria incapaz de descrever aquela riqueza de gestos e atitudes.

Segundo ele Denise fora legenda. Quando rapariga tinha um corpo formoso, pernas de entontecer, e começou cedo a tirar proveito da beleza. Casou rica, divorciou-se, casou ainda mais rica, voltou a divorciar-se. No dizer do Taveira conseguia transformar os seus gestos em momentos de arte, chegando - as palavras e a estupefacção são dele- «a essa coisa extraordinária, de com as suas pernas se exprimir numa verdadeira linguagem».
— Falava com as pernas.
— Realmente era como se falasse — respondeu ele, indiferente à nossa ironia.
Vi-a tempos depois num beberete em que se festejava um aniversário. Infelizmente envelheceu sem amadurar. A sua voz mantém um artificioso timbre infantil, e aquele pestanejar e as boquinhas, que de certeza a tornavam atraente na juventude, agora incomodam como um esgar nervoso.
Quando se sentou os meus olhos seguiram curiosos as pernas que tinham «falado», mas surpresos com a curteza da saia e os estragos da idade, mandei-lhes discretamente que se
afastassem.
Para nós, os velhos o drama começa quando, sem pensar, dizemos a quem nos ouve: «Sinto-me como se tivesse vinte anos.»

sexta-feira, abril 28

Campião

 

O tribunal de Haia proíbe um doador de esperma de continuar a sementeira, porque o benfeitor ultrapassou já os quinhentos e cinquenta "filhos".

quinta-feira, abril 27

UFO



 Apareceu hoje num vaso do nosso pátio. Será borboleta? Ave? Extra-terrestre. Estranho é.


Desertos

Viram mundo. Provam-no com relatos, fotografias, vídeos, por vezes até uma dúzia de linhas de revista. Viram mundo, viajaram muito, foram aos longes onde tudo é exótico, mas só defeito de nascença ou desarranjo da cabeça explicará tanta boçalidade.

Comentam o que viram com um entusiasmo que quer passar por original e é apenas um triste refogado. Conhecem gente. Mencionam datas, casos. Viveram tantas situações em simultâneo que se diria terem herdado a ubiquidade antonina. São simples. Arrepanhando os lábios ou de queixo descaído, sofrem da pedantice triste dos que papagueiam fiapos de conhecimento mal atado. Têm opiniões. Aborrecem. Viram mundo, mas ao ouvi-los pergunta-se a gente em que desertos se terão perdido.

 

 

domingo, abril 23

O tamanho do mundo

É uma história das que se contavam à lareira nas primeiras décadas do século passado, quando as horas tinham um vagar de preguiça. Mesmo aos que já chegaram aos sessenta, custará a compreender a simplicidade do tempo em que, nas aldeias perdidas nos confins, a experiência do mundo se limitava ao que acontecia no povoado.

À vila só ia, uma vez por ano, o encarregado de nas Finanças pagar as contribuições de todos, e à volta ouviam dele histórias espantosas de abundância, gente que usava outra roupa, uns carros que andavam sem burras que os puxassem.

Nas horas de aflição, doença, grande perigo, ou aquelas tempestades que em minutos destruíam o que seria o sustento do ano inteiro, corriam as pessoas à igreja a fazer promessas. Assim tinha o Nabiço prometido ir em romaria ao Santo Antão da Barca, que lhe curara a burra de uma ferida de que todos diziam que não escapava. Com o animal salvo chegou a hora de cumprir o prometido, e assim uma madrugada deu o Manuel os primeiros passos dos sessenta quilómetros (doze léguas, como então se dizia) que o separavam da capelinha do santo, lá para as bandas do rio Sabor.

Caminhou três dias e parte das noites por ser Lua cheia. Ajoelhado na capela agradeceu ao santo o milagre, rezou uns quantos padre-nossos, três dias depois viram-no chegar à aldeia, derreado mas satisfeito por ter cumprido a promessa. O que não adiantava era perguntar-lhe como tinha sido, por que terras tinha passado, se a capela do santo era realmente tão bonita como diziam.

Encolhia os ombros, virava as costas, mas resposta não dava, a ponto que começaram a suspeitar que lhe devia ter acontecido alguma desgraça. Finalmente abriu-se ao Cegonho, com a promessa de que o não contasse a ninguém: - Somos uns tolinhos! O mundo é muito maior do que nós pensamos! Pra lá do Sabor ainda há casas!