terça-feira, fevereiro 12

O medo dos enterros


O medo dos enterros

Talvez porque não me pudessem deixar sozinho em casa, eu teria então cinco ou seis anos, ou para me iniciarem no ritual, o meu primeiro enterro foi o da Joaquina, que sempre conheci acamada, e que por sofrer de morfeia havia no seu quarto um cheiro de podridão que me assustava e fazia chorar cada vez que minha Mãe lá ia de visita e praticamente tinha de me levar de rastos.
Desse enterro guardo a recordação de só ver pernas à minha volta, de achar estranho o som da campainha, que o padre fosse a falar sozinho e em voz alta, e depois, em volta da campa, que uma desconhecida me dissesse para apanhar um punhado da terra e atirasse com ele para a cova.
Tudo aquilo me pareceu bizarro, e desde então, durante muito tempo sempre encontrei maneira de só acompanhar ao cemitério os de família chegada e um ou outro amigo que merecia a homenagem. Contudo, os anos vão afrouxando a resistência, e depois, por ser vizinho, ou porque andou connosco na escola, ou por ser o pai de fulano, parece mal não acompanhar este e aquele à última morada.
Nessas ocasiões faço das tripas coração e, literalmente com cara de enterro, lá vou no cortejo. Aborrece-me o carpir de circunstância, mas também sofro com dificuldade o verdadeiro pesar, pois por pouco se me enchem os olhos de lágrimas. Além disso, a ideia que então tenho não é a de que testemunho um momento solene no campo santo, sim que me encontro numa espécie de ensaio teatral em que cada um dos presentes improvisa o seu papel. Todavia, goste ou não goste, há que cumprir as obrigações, de modo que uns dias antes da Páscoa lá fui a um funeral.
Préstito, missa de corpo presente, homilia, demasiado choro para ser de todo  sentido e sincero, feito o enterro fomos em pequenos grupos para o caminho de volta.
No meu vinha um cunhado do falecido, e esse tinha uma história para contar. Dias atrás, ao aproximar-se da cama onde o infeliz jazia entrevado, a viúva apanhara um susto ao vê-lo rebolar os olhos, erguer os braços, e acenar umas quantas vezes como se indicasse um furioso não.
- A minha irmã ainda lhe perguntou o que queria, mas ele há mais de um mês  que não podia falar. Foi então que ela sentiu no quarto uma corrente de ar muito frio e teve a certeza de que o Sebastião tinha visto a Morte, não ia durar. E de facto...
Pode ter sido impressão minha, ou talvez porque no grupo era eu o mais idoso, mas a verdade é que nesse momento se levantou uma aragem, e pareceu-me que os que iam ao meu lado involuntariamente se afastavam.