quarta-feira, maio 28

"As atuais classes sociais"


Homem de cultura e saber, historiador, arqueólogo,escritor, biógrafo, Mesário-Mor da Confraria Queirosiana, franco na fala, claro nas ideias e meu amigo, Joaquim Gonçalves Guimarães publicou dias atrás em http://eca-e-outras.blogspot.pt/ o texto que segue.
A muitos parecerá longo, mas esses provavelmente não ganhariam com a leitura. Aproveitarão, como eu aproveitei, os que arranjam tempo para ler e pensar.


As atuais classes sociais

Parece-nos óbvio que a sociedade continua dividida em classes e resultou ingénua nos seus propósitos a tentativa de igualdade da Revolução Francesa, impossível de concretizar-se, como o demonstraria Darwin, porque estamos a falar de seres vivos e não de “peças”.
Se nos parece hoje completamente inapropriada a velha classificação classista em clero, nobreza e povo, ela própria já complicada desde o século XIV com a ascensão ao poder da burguesia urbana europeia, também nos parecem completamente fora da realidade as suas denominações derivadas, ainda sustentadas pela terminologia dos pensadores do século XIX, nomeadamente os marxistas, que falam ainda muito, e até aos dias de hoje, em povo e em burguesia. Ora parece-nos que tal já não tem fundamento nem histórico nem sociológico. Talvez seja apenas um comodismo cultural.
Ainda há pouco tempo ouvi, a propósito de terrenos baldios, um presidente de junta de freguesia falar em nome do povo exatamente como o fariam qualquer fidalgo ou frade do século XVIII sobre a sua coutada ou o seu couto, não por poderem ser úteis à comunidade, mas apenas porque lhe pertenceriam por direito, só faltando o “divino”, agora às vezes substituído pelo “constitucional”. Mas sem qualquer alusão à circunstância de tais terrenos servirem ou não para alguma coisa, ou mesmo gerarem despesa pública, como era o caso devido aos incêndios e seu combate. Rendimento? Interesse comunitário? Um rebanho de uma dúzia de cabras e a “satisfação da propriedade”. Ora o tal nobre ou o tal frade, ainda que com fundamentos ideológicos diversos, invocariam noutros tempos os mesmíssimos motivos deste representante do povo de agora. Porquê? Porque hoje já não há separação funcional das classes mas apenas graus ou gradações simbólicas, a sua representação social é transversal porque se democratizou e a única diferenciação efetiva é a económica, gerando ou mantendo a capacidade de sobrevivência e de preponderância do indivíduo, e não já da classe, na sociedade atual.
Nos dias de hoje são pois as seguintes as classes sociais existentes, desde a base da pirâmide para o vértice (para usar ainda uma imagem clássica): em primeiro lugar os Indigentes, aqueles que são completamente dependentes dos outros para sobreviver, não auferindo qualquer remuneração regular nem detendo qualquer meio ou força de produção de bens e serviços.
Seguem-se os Pensionistas, com diversas denominações, aqueles a quem a sociedade organizada, através dos setores público, privado ou misto, assegura uma remuneração regular e pré-determinada, quer ela corresponda à reforma devida pelos descontos que efetuaram durante a sua atividade produtiva, quer corresponda ao subsídio, ainda que temporário, de desemprego ou qualquer outra indeminização social.
Temos depois a grande massa dos Assalariados, aqueles que recebem uma remuneração contratada ou à tarefa, em troca do serviço que prestam ou dos bens que produzem. É também do seu trabalho que sai a maior parte dos descontos para sustentar os Pensionistas e os Indigentes.
Seguem-se os Produtores, aqueles que sob várias formas organizativas “trabalham por conta própria”, na produção de bens e serviços que a sociedade lhes paga diretamente, quer de bens intelectuais (pintores, escritores, músicos), quer de serviços (guias de viagem ou jornalistas free lancers, por exemplo), quer agricultores ou industriais. São os donos dos seus próprios meios de produção e deles, bem assim como da conjuntura económica, são totalmente dependentes.
Temos depois os Especuladores, aqueles que, sem nada produzirem diretamente, vivem dos rendimentos do capital que herdaram ou acumularam e das suas mais valias. Não tanto como os anteriores, o seu número e importância social variam muito, dependendo do capital investido e do saldo conseguido e do volume dos resultados alcançados. Normalmente os indivíduos desta classe seguram-se económica e socialmente como Pensionistas.
Finalmente, em volta do vértice da pirâmide, temos os poucos mas muito poderosos Capitalistas, aqueles que, partindo de ideologias religiosas ou políticas várias, são protegidos por governos, polícias e exércitos, detêm a riqueza das nações, mandam nos governantes – que todos os outros podem eleger ou suportar no poder – e controlam a sociedade de acordo com uma estratégia local, regional ou global de acumulação contínua de riqueza artificialmente valorizada na bolsa e na especulação bancária e não no mundo do trabalho, a qual pouco ou nada tem a ver com a racionalidade humana, as bondades das religiões, os desesperos das fomes e o socorro às desgraças naturais, enganando os cidadãos entretidos com fantasias sociais e culturais. Conseguem (e conseguem-no muitas vezes) transformar a guerra, a doença, a fome, as crenças, a vida das pessoas, a existência enfim, no lucro que continuamente oleia e alimenta a sua máquina.
São estas as classes sociais atuais, ainda que com algumas possibilidades de sobreposições e variantes. É certo que Eça de Queirós já falava de «tempos de semitismo e de capitalismo», quando ainda a «Burguesia Liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares» (A Relíquia), quando alguns padres sonhavam ainda ter «o privilégio de destronar os reis e dispor de coroas! (O Crime do Padre Amaro), e o povo tinha aquela «morosa paciência de boi manso» (A Correspondência de Fradique Mendes). Mas tudo isso é século XIX e vale hoje tanto como as poesias de Castilho. Saiba-me você, caro leitor, sem se enganar a si próprio, se é essencialmente um Indigente, um Pensionista, um Assalariado, um Produtor, um Especulador ou um Capitalista e vai ver que passa a perceber muito melhor o mundo que o rodeia. E arrume na sua estante, ao lado dos romances de Júlio Dinis, essas velhas e hoje inúteis denominações de clero, nobreza, burguesia e povo, ou semelhantes.
Mas, dir-me-á balbuciando, que farei eu a partir de agora com o estatuto social que supunha ter, a minha árvore de costados sem avós adúlteras, o título concedido a um longínquo antepassado que matou infiéis nas Cruzadas, a caveira de um servo da gleba morto em Aljubarrota de quem descendo segundo os mórmons, a memória de um visconde negreiro liberal, um tio-avô carbonário irmão do bispo do Dongo antepassado de um atual ministro de antiga colónia, um avô morgado membro da Internacional, um agricultor da campanha do trigo, um capitão da marinha mercante, um pai e uma mãe crentes nas aparições de Fátima e nas excelências do Estado Novo? Tudo isso vai para a lixeira da História, seu execrável positivista?! (chamar-me-á você assim à falta de melhor, mas olhe que já não se usa!). Não sei que lhe diga. Se puder, estime e cultive a sua dimensão humana, guarde as suas memórias, e se puder estude-as, ou dê a estudá-las a quem o saiba fazer, para se libertar do sarro da História, e talvez isso lhe seja útil e proveitoso.
Mas, dirá ainda você perante a minha já indisfarçável impaciência, mas então o meu doutoramento em semiótica quântica, a minha grã-cruz, a minha filiação no Ordem do Supremo Bem, a minha taça internacional de golf, o diploma de melhor pai de família do ano, não valem nada, não me separam dos “indiferenciados”?
Guarde-os bem guardados e que lhe façam bom proveito. Não sei se lhe agradará saber que muitos outros Indigentes, Pensionistas, Assalariados, Especuladores e (muito poucos) Capitalistas, têm curriculum idêntico ou mesmo superior ao seu e isso não os tem feito mudar de classe social, nem para “cima”, nem para “baixo”. A não ser na República da Fantasia, onde o ingresso ainda é grátis.

J. A. Gonçalves Guimarães

segunda-feira, maio 26

Palavras de amor


Palavras de amor. Eram dos poetas, dos apaixonados, dos adolescentes, das mães para os filhos, sussurravam-nas as solteironas aos gatos, as beatas diante do Crucificado; liam-se nos romances em que a doente se apaixonava pelo médico, ou a criada de dentro caía nos braços do fidalgo; ouviam-se nos fados, soletravam-nas as actrizes nos filmes a preto e branco.
Hoje as palavras de amor continuam a ser dos poetas e dos namorados, das mães, das solteironas, das beatas, mas são-no também da publicidade, ajudam a vender mixórdias e cremes, automóveis, iogurte, pasta dos dentes, gelados, café e chá, o caldo Knorr; são usadas pelas agências de viagens, fabricantes de smart phones,  político americano que queira manter o lugar termina a arenga às massas com um I love you.
Já havia inflacção, até que uns dez anos atrás chegaram os blogues, e com eles as palavras de amor tornaram-se enxurrada, com a qualidade das enxurradas. Permito-me afirmá-lo porque investiguei, investigo, exploro-as na blogosfera com uma dedicação de entomologista à procura do insecto raro.
Pode ser que ande por lá, mas bem escondida, a expressão de amor original, elegante, formulada de modo em que nela a paixão cintile e ressalte.
Sinal dos tempos, da vulgarização, das modas, da tendência para nivelar pelo mais baixo, mais usual, compreensível mesmo para os fracos do espírito, abunda a chochice, a frase requentada, aquele "amo-te" tão desgastado pelo abuso que dá para parafrasear o "se fosses só três sílabas" de Alexandre O'Neill.
E a julgar pelo que na blogosfera leio, senhoras e meninas levam a palma, pois ainda não encontrei uma que exprima a sua paixão com um vocabulário ou estilo que me dê vontade de, literalmente, sair à rua a deitar foguetes.
Senhoras e senhores, meninos e meninas:
As vossas paixões e a nossa língua bem merecem o esforço: aprendam a falar de amor.

sábado, maio 24

Visão do mundo


Razão válida não descortino, mas ando de sombras e azedu­me­­, resmungando, como Cristo, que este mundo não é o meu. É da Lady Gaga, dos reumáticos Stones, do falecido Jackson (Michael para os íntimos), da plastificada, caiada, rebocada Madona, dos muitos que os imitam e valem o mesmo.
É do My Space, onde se diz que seriam precisos 240 anos para ouvir os milhões de músicas lá armazenadas. É dos iPhones, tablets e mais aparelhagem de comunicação instantânea para as solidões e amizades do Facebook, dos chilreios no Twitter, dos terabytes de imbecilidade armazenados no Cloud.
É dos romances que leio sem compreender, dos filmes que o mostram a findar em catástrofe, salvo in extremis por super-heróis.  É da Star Wars,  do Avatar e outras poderosas criações que me fazem rir.
Bem sei que o vejo assim porque muito desconheço, fora que a idade, a disposição, o interesse e o carácter, me prendem a coisas menos complexas, de silêncio e escassa agitação.
Alguma vantagem há em que, não participando, tudo me seja espectáculo, mas uma coisa é comprar entrada para querer assistir, outra é ser obrigado a ficar no teatro.

terça-feira, maio 20

Horror

(Clique)
Chegado à juventude, pouco a pouco fui deixando de ter heróis e aprendendo a olhar para as grandes figuras com uma boa dose de suspeita. Os livros de Simon Sebag Montefiore sobre Estaline deram-me, julgava eu, a catanada final nos resquícios do que ainda poderia ter de ilusão sobre os "gigantes da História".
De Mao Tsé-Tung sempre desconfiei, mas nem de longe conseguiria imaginar as dimensões do monstro que foi, do indivíduo repelente que conseguiu dominar a China.
Mais de uma vez se me apertou a garganta com a leitura de Mao – The Unknown Story - pelos indescritíveis horrores, mas também, e felizmente, pela atitude daqueles que se lhe opuseram, sabendo que a tortura e a morte os esperava.
Grande livro, que muitos deveriam ler, quanto mais não fosse para se dar conta dos extremos de baixeza e crueldade de que o ser humano é capaz.


segunda-feira, maio 19

Mandarins

(Clique)
Conversa sobre o passado, para ele longínquo, que é grande a carrada de anos. Mas à medida que vai contando descaem-se-me os queixos, custa acreditar que, chegado àquela idade não se mostre como é, não conte como de verdade foi, mas, à maneira das anciãs que desdenham do espelho e acreditam em cremes, também ele julgue iludir com a cosmética do pensamento elevado, das atitudes nobres, do alto grau intelectual da correspondência que logo na juventude trocou, certo e seguro dos píncaros a que iria subir.
Subiu.  A Pátria, honrada com tal filho, mandará esculpir estátuas e fabricar tabuletas para as ruas com o seu nome.
Mas eu, que também venho de longe, fora que o estrabismo de que devia sofrer nos olhos provavelmente me atacou o cérebro, vejo-me a interpretar a prosápia doutro modo.
Ademais, incomoda-me a boa memória que tenho, pois guardo viva a recordação das pulhices, das sacanices, traições, golpes baixos, mentiras, denúncias, perguntando-me porque a perdeu ele, ou com que lixívia se branqueia.

terça-feira, maio 13

Felicidade às gotas


Afirmam os modestos e os medrosos que a felicidade é boa quando chega aos poucos ou em pequenas doses, provavelmente à maneira das gotas do soro fisiológico que lentamente penetram na veia do enfermo.
Outros há que a desejam repentina, um furacão, querem sentir-se arrebatados, como parece que acontece aos poetas românticos quando, depois de muita solidão e êxtase, subitamente enfrentam o objecto do seu amor.
A maioria, por certo também neste caso se comporta na forma habitual, deseja-se medianamente feliz, nada de altos e baixos, jackpots e misérias.
De facto, pouco adiantam as lucubrações, de nada valem os votos que fazemos, tão-pouco nos chega a felicidade em grande ou pequena medida. É um estado de alma.
Arrisco-me a dizer que ela só existe quando a chamamos, e ainda é preciso reconhecê-la, condão que a muitos falta.