As voltas da vida
Foi há séculos, como se costuma
dizer, mas talvez devido à surpresa e ao incómodo que me causou o aviso, não
recordo somente as palavras, mas ficou-me uma memória nítida do lugar, a sala
de um pequeno apartamento parisiense, do desarrumo boémio que lá reinava, e de
que talvez por estarem as luzes acesas, malgrado ser um dia soalheiro, o
ambiente era tristonho.
Nessa semana ia chegar aos trinta,
mas poucas ocasiões lembro em que me tenha sentido tão capaz para enfrentar obstáculos
e contratempos.
Porque era essa a minha vivência
e a euforia causa uma espécie de cegueira,
surpreendeu-me a inesperada severidade com que, tocando-me no peito com
o dedo, o meu amigo terminou o raspanete, dizendo que eu nada sabia da vida e
tinha muito a aprender.
Nessa altura não era nada dado a
aceitar a opinião alheia, e ainda hoje o sou pouco, mas dessa vez, porém, sabendo
que ele me estimava, o aviso não caiu de todo em ouvidos de surdo. E é assim
que, passados tantos anos, as suas palavras continuam a ressoar na memória
sempre que me pergunto sobre o que sei da vida, ou melhor: sobre o que julgo saber
da vida.
A resposta é uma dolorosa
confissão. Sem falsa vergonha devo conceder que a passagem do tempo não abonou
a experiência que com tanta idade eu deveria ter ganho, nem contribuiu para
diminuir a surpresa que me causa a minha ignorância da vida. Muitos serão os
que existem com o sentimento de que avançam tacteando no escuro, como do mesmo
modo outros haverá também que não conseguem atinar com o que lhes acontece e, desesperados,
tentam compreender porque motivo as andanças do dia-a-dia lhes trocam as voltas
e os deixam à deriva.
A esse respeito devo dizer que,
finalmente e pouco a pouco, vou registando um certo avanço, e embora não seja
ainda questão de que comece a deitar foguetes, surpreende-me a facilidade com
que deixei de fazer planos a longo prazo. Continuo a assentar no calendário uma
ou outra obrigação para a próxima semana, a data da consulta ao cardiologista,
a revisão do carro, mas o resto vai ao sabor da corrente e das eventuais
surpresas, as quais nem sempre, como eu temia, acabam por se mostrar
desagradáveis. Nada de marcações ou planos,
agendados com meses e até anos de antecedência, ou estabelecendo
programas que implicam absurdas certezas do que trará o amanhã.
Os que ainda não chegaram ao
ponto em que me encontro poderão dizer que é desleixo, medo, preguiça, ou me
inclino para o fatalismo, mas a esses peço que acreditem: é apenas humildade.