Os arranjos do Destino
Casos que se contam, cenas que
se imaginam, histórias que se ouviram e se repetem. Depois, em momentos
perdidos ou no torvelinho da insónia, por vezes descobrimos estranhas ligações:
no caso alheio há uma parte que reconhecemos, na aflição dos outros um detalhe que
estranhamente nos une, ou nos toca por recordar a nossa.
Por hábito, em silêncio, sem um
aceno, levantaram-se em simultâneo da mesa, ele à frente, ela atrás, foram
sentar-se na varanda à sombra do toldo. Baixando-se a custo, ele pousa o jornal
nos joelhos enquanto procura os óculos. Ela abriu a Caras, distraída a olhar para a varanda fronteira, onde uma mulher
jovem ralha a uma criança, e não consegue distinguir se é menino ou menina.
- Estás a ver aquilo?
Encara-o, ele não reage. Sempre
teve aquele modo de só ouvir quando quer, mas também é verdade que está a ficar
surdo. No domingo tinham festejado trinta e cinco anos de casados, se bem que festejado
seja modo de dizer, eram só os dois, que parentes não têm, nem amigos, e o único
afilhado há séculos que está na Alemanha, sabem pouco dele, até pode ter
morrido.
Como em todos os seus aniversários,
por tradição, tinha sido um arroz de marisco no ‘Bernardo das Lampreias’, creme
de leite, dois copinhos de Licor Beirão, dois descafeinados. Depois, porque ele
se sentia indisposto e com as pernas muito inchadas, em vez de irem ao cinema
acharam melhor voltar para casa, e como agora e quase todos os dias quando o
tempo ajuda, tinham ficado na varanda a ler, a olhar a rua.
Encara-o, porque o ouviu gemer.
Vê-o levantar-se e voltar-lhe as costas, um instante indeciso, segurando o
estômago como às vezes faz quando suspeita que vai vomitar.
- Sentes-te mal? Terá sido dos
pêssegos?
Ele abana a cabeça, caminha para
dentro num passo arrastado.
Bom homem. Trabalhador. Nunca
lhe tocou, nem com a ponta de um dedo. Hesita um instante se não será melhor ir
ver, mas aquieta-se ao ouvi-lo tossir no quarto de banho.
Fecha a revista e pousa-a no
regaço, perde-se em recordações. Trinta e cinco anos é muito tempo. Podia ter
sido outro, que namorados não lhe faltavam, mas foi esperando, esperando, e os
anos a passar... Pensava assim, pensava assado, este era bonitão, aquele estava
melhor na vida, o Jorge tinha dois táxis,
o primo da Carolina ganhava muito nos cruzeiros.
Para dizer a verdade bem viu que
este não lhe calhava, só que às tantas não tinha hipótese, foi o que se arranjou.
Mas há horas em que se pergunta que adianta
nascer para um destino assim.