terça-feira, fevereiro 12

Os arranjos do Destino


Os arranjos do Destino

Casos que se contam, cenas que se imaginam, histórias que se ouviram e se repetem. Depois, em momentos perdidos ou no torvelinho da insónia, por vezes descobrimos estranhas ligações: no caso alheio há uma parte que reconhecemos, na aflição dos outros um detalhe que estranhamente nos une, ou nos toca por recordar a nossa.

Por hábito, em silêncio, sem um aceno, levantaram-se em simultâneo da mesa, ele à frente, ela atrás, foram sentar-se na varanda à sombra do toldo. Baixando-se a custo, ele pousa o jornal nos joelhos enquanto procura os óculos. Ela abriu a Caras, distraída a olhar para a varanda fronteira, onde uma mulher jovem ralha a uma criança, e não consegue distinguir se é menino ou menina.
- Estás a ver aquilo?
Encara-o, ele não reage. Sempre teve aquele modo de só ouvir quando quer, mas também é verdade que está a ficar surdo. No domingo tinham festejado trinta e cinco anos de casados, se bem que festejado seja modo de dizer, eram só os dois, que parentes não têm, nem amigos, e o único afilhado há séculos que está na Alemanha, sabem pouco dele, até pode ter morrido.
Como em todos os seus aniversários, por tradição, tinha sido um arroz de marisco no ‘Bernardo das Lampreias’, creme de leite, dois copinhos de Licor Beirão, dois descafeinados. Depois, porque ele se sentia indisposto e com as pernas muito inchadas, em vez de irem ao cinema acharam melhor voltar para casa, e como agora e quase todos os dias quando o tempo ajuda, tinham ficado na varanda a ler, a olhar a rua.
Encara-o, porque o ouviu gemer. Vê-o levantar-se e voltar-lhe as costas, um instante indeciso, segurando o estômago como às vezes faz quando suspeita que vai vomitar.
- Sentes-te mal? Terá sido dos pêssegos?
Ele abana a cabeça, caminha para dentro num passo arrastado.
Bom homem. Trabalhador. Nunca lhe tocou, nem com a ponta de um dedo. Hesita um instante se não será melhor ir ver, mas aquieta-se ao ouvi-lo tossir no quarto de banho.
Fecha a revista e pousa-a no regaço, perde-se em recordações. Trinta e cinco anos é muito tempo. Podia ter sido outro, que namorados não lhe faltavam, mas foi esperando, esperando, e os anos a passar... Pensava assim, pensava assado, este era bonitão, aquele estava melhor na vida, o Jorge  tinha dois táxis, o primo da Carolina ganhava muito nos cruzeiros.
Para dizer a verdade bem viu que este não lhe calhava, só que às tantas não tinha hipótese, foi o que se arranjou. Mas há horas em que se pergunta que adianta  nascer para um destino assim.