Retratos sem moldura
Só mesmo os idosos ainda folheiam daqueles álbuns onde
se colavam fotografias, e creio que dos oitenta para baixo, mal se fala em
retratos todos põem o dedo no ecrã do telemóvel.
Também tenho um, mas como o teclado por vezes me atrapalha,
se é questão de retratos raro pego no aparelho, acho mais fiéis os que guardo
na memória.
Retiro de lá este, o de uma mulher que em muito se
destacava. Olhos negros, grandes, expressivos, sobrancelhas num ligeiro arco,
nariz grego, lábios sensuais. O corpo uma perfeição, pernas de bailarina.
Estaria então no fim dos trinta. Passem-se os detalhes, calemos o estado civil,
deixe-se a família no escuro do anonimato, bem assim como a profissão, onde
dava cartas pela inteligência e o talento.
Despertava paixões em ambos os sexos, mas quem se
arriscava a ir com ela para a cama saía a perder. É que intimidade com
semelhante mulher, além de intelecto e delicadeza
dos sentidos, exigia preparos e habilitações que os mais não tinham. De modo
que muitos a desejavam, mas depois de tanta decepção ainda partilhava o corpo,
nunca a alma. Terminou orgulhosa e descontente, perguntando-se o que teria
feito para merecer a solidão de que ninguém se apercebia, e aos poucos a
transformara na mulher que não queria ser.
Enternece-me olhar para o desta. Tinha dezanove quando
começou o namoro, aos vinte e um deu-se conta de que não ia continuar aquela parvoíce
de mãos dadas, passeios ao domingo, beijos na face, os pais de ambos a
fiscalizar, calculando posses, falando de netos, o jeitoso nada interessado em trabalhos
de fornicação e procriação. Disse-lhe adeus. Mas bonita, inteligente, simpática
e despachada, bastou que lançasse o anzol para logo apanhar outro.
Foi isso há vidas. Um fim de tarde, conversando na
esplanada, ainda queixosa de por tanto tempo se ter mantido virgem, perguntou-me
se lhe podia explicar por que razão o sexo nunca é como sonhamos, nem como dizem.
Amuou ao ouvir que, salvo milagrosos momentos, a
cópula poucas vezes é de dois, sim de um mais um, cada parceiro com a sua
solidão, sensível a recordações, sussurros, odores, suspiros, a perguntar-se se
está a fingir ou se o outro finge, penosamente desfiando a lista dos porquês,
seus e alheios.
Desagradou-lhe a franqueza, chamou-me cínico, disse
que ninguém pensava assim, era maldade
minha, e despediu-se, jurando que se arrependia de me ter falado.
Revejo-a ainda a ir por entre as mesas, decidida,
indiferente aos olhares, cheia daquelas certezas que a juventude tem.