terça-feira, fevereiro 12

Retratos sem moldura



Retratos sem moldura

Só mesmo os idosos ainda folheiam daqueles álbuns onde se colavam fotografias, e creio que dos oitenta para baixo, mal se fala em retratos todos põem o dedo no ecrã do telemóvel.
Também tenho um, mas como o teclado por vezes me atrapalha, se é questão de retratos raro pego no aparelho, acho mais fiéis os que guardo na memória.

Retiro de lá este, o de uma mulher que em muito se destacava. Olhos negros, grandes, expressivos, sobrancelhas num ligeiro arco, nariz grego, lábios sensuais. O corpo uma perfeição, pernas de bailarina. Estaria então no fim dos trinta. Passem-se os detalhes, calemos o estado civil, deixe-se a família no escuro do anonimato, bem assim como a profissão, onde dava cartas pela inteligência e o talento.
Despertava paixões em ambos os sexos, mas quem se arriscava a ir com ela para a cama saía a perder. É que intimidade com semelhante mulher, além de  intelecto e delicadeza dos sentidos, exigia preparos e habilitações que os mais não tinham. De modo que muitos a desejavam, mas depois de tanta decepção ainda partilhava o corpo, nunca a alma. Terminou orgulhosa e descontente, perguntando-se o que teria feito para merecer a solidão de que ninguém se apercebia, e aos poucos a transformara na mulher que não queria ser.

Enternece-me olhar para o desta. Tinha dezanove quando começou o namoro, aos vinte e um deu-se conta de que não ia continuar aquela parvoíce de mãos dadas, passeios ao domingo, beijos na face, os pais de ambos a fiscalizar, calculando posses, falando de netos, o jeitoso nada interessado em trabalhos de fornicação e procriação. Disse-lhe adeus. Mas bonita, inteligente, simpática e despachada, bastou que lançasse o anzol para logo apanhar outro.
Foi isso há vidas. Um fim de tarde, conversando na esplanada, ainda queixosa de por tanto tempo se ter mantido virgem, perguntou-me se lhe podia explicar por que razão o sexo nunca é como sonhamos, nem como dizem.
Amuou ao ouvir que, salvo milagrosos momentos, a cópula poucas vezes é de dois, sim de um mais um, cada parceiro com a sua solidão, sensível a recordações, sussurros, odores, suspiros, a perguntar-se se está a fingir ou se o outro finge, penosamente desfiando a lista dos porquês, seus e alheios.
Desagradou-lhe a franqueza, chamou-me cínico, disse que ninguém pensava  assim, era maldade minha, e despediu-se, jurando que se arrependia de me ter falado.
Revejo-a ainda a ir por entre as mesas, decidida, indiferente aos olhares, cheia daquelas certezas que a juventude tem.