AS AGENDAS DA MAFALDA
Ao fim da tarde de 31 de Dezembro de 1999, uma sexta-feira,
Mafalda entrou na papelaria para comprar envelopes. Cedendo a um impulso,
comprou também uma agenda, sem atender que era demasiado grande, e que teria de
arranjar outra mais ajustada para trazer na bolsa.
No dia seguinte, sem intenção de continuar, somente porque
lhe parecia extraordinário assistir à viragem
do século, abriu a agenda e escreveu um pequeno resumo da sua identidade e da
sua vida: vinte e quatro anos, solteira, filha única, os pais vivos, veterinária,
namorada do Paulo, casamento marcado para Setembro. Anotou também dois grandes
sonhos que acalentava, mas ao reler o que tinha escrito assustou-se com a
possibilidade de que alguém descobrisse o seu segredo e rasurou cuidadosamente as
palavras.
De qualquer modo aquilo tornara-se hábito, e passou a
comprar a mesma agenda todos os anos,registando sentimentos, namoros, encontros,
alegrias e esperanças, sempre no estilo telegráfico a que obrigava o pouco
espaço reservado para cada dia.
Na passada segunda-feira, à noite, sozinha em casa, Mafalda
abriu o champanhe, e com um vago sentimento de fraternidade por aquelas
multidões em festa ao redor do mundo, à última das badaladas brindou ao Ano
Novo defronte da televisão.
Depois baixou o som e foi sentar-se à secretária onde, num
ritual de cada noite de fim do ano, já tinha alinhado como numa estante as agora
dezoito agendas, todas idênticas àquela primeira e da mesma cor vermelha, distinguindo-se
apenas pela data na capa.
Seguindo o hábito que desde o divórcio tem mantido para
assinalar o começo do ano, encheu uma segunda taça de champanhe, e de olhos
cerrados passou os dedos sobre as agendas. Escolheu uma ao acaso, abriu-a para
ver a data, curiosa do que teria anotado, estranhando que nessa altura a sua caligrafia
tivesse continuado regular, quase a
mesma da adolescência:
‘Quinta-feira, 21 de Julho, 2011- Fazer das tripas um
coração bem grande. Não esquecer que o amor é dádiva e, sendo assim, toda a dor
causada, toda a decepção, todo o aborrecimento, venham eles quando vierem, como
vierem, devem ser aceites com o sorriso que perdoa e compreende. A dádiva do amor
está em que esse sorriso venha do coração, mesmo que seja de um feito das
tripas.’
Fechou a agenda, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça, descrente
de ter escrito aquilo, que jamais
tivesse pensado e sentido assim. Dádiva? Que dádiva? O que julgara amor tinha
sido apenas a ratoeira em que a sua inocência a fizera cair.