sexta-feira, julho 31

"Le Beuret"

"Certas histórias, mesmo comezinhas, só se podem contar de maneira satisfatória quando se lhes acrescenta um luxo de pormenores. A compreensão de outras necessita do apoio de referências: data, momento histórico, circunstâncias, antecedentes... Em vez da meia dúzia de folhas planeadas enche-se com elas um caderno. Há as que obrigam o narrador a valer-se aqui e ali de uma frase estrangei­ra, não somente para avivar a cor local, mas também porque a tradução, daninha e insuficiente, conduziria a um purismo caricato.

Mais adiante contarei como era meu hábito diário pedir a monsieur Antoine "Un grand crème et un croissant beurre, s'il vous plaît". Seria estranho escrever, recorrendo aos dicionários: "Senhor António, faça favor de me dar uma xícara grande de café com leite e um pãozinho (ou bolo) amanteigado em forma de meia lua." Além de não parecer a mesma coisa e fazer rir, até o cheiro e o sabor se tornariam outros na imaginação do leitor.

Algumas histórias, pois, já antes de contadas apresentam tantas exigências e obstáculos, que a gente se pergunta se valerá a pena ir por diante. Para quê, realmente? Além disso, casos como o que segue ocorrem todos os dias. Uns mais horrorosos; outros, ao contrário deste, requintadamente premeditados. Depois, no nosso tempo, a morte inesperada e violenta deixou de interessar, e nas estatísticas já ela provavelmente equilibra o tipo antigo da morte natural.

A razão e desculpa que me posso dar para prosseguir, será talvez a simpatia que sempre tive pelos romances policiais. Ou o fascínio com que leio a descrição de crimes e dos seus motivos. A surpresa de ter de admitir que não é preciso chegar a extremos para que qualquer de nós deite mão da navalha, da pistola ou do veneno."

in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal, 2011

 

O bom senso

"São cada vez mais as  evidências que poderemos estar a colocar  esta doença em primeiro lugar e a vida em último." Ler o texto aqui: https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/ha-vida-para-alem-do-coronavirus-6979332

quinta-feira, julho 30

Bem-hajas

Cada um julgará à sua maneira. De qualquer modo, quando de manhã abro este blog toma-me um sentimento de simpatia e cordialidade, de gratidão também, porque quem bate à minha porta quer-me dizer que não estou só e que não se aborrece por ser de sentido único a conversa.

quarta-feira, julho 29

O presunto de Lamego

"O meu gosto seria participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espíritos superiores que, com ciência e sageza, explicam a diversidade das gentes, o presente do mundo, o seu futuro, os mistérios do Além.
Esse seria o meu gosto. A minha realidade é a do conhecido que, ao entrar no café, me agarra sussurrando: - Gostei daquela história da gaja e do gato.
Ao mesmo tempo que me liberto do abraço, sorrio, encolho os ombros, tenho uma vaga ideia do que quer dizer. Mas já ele avança a informar que também tem um blogue onde trata “de coisas interessantes da região e faz umas brincadeiras.”
Espero. Vejo-o dar uma piscadela de olho a criar suspense. Embora seja pouca a clientela quer que nos sentemos ao fundo da sala:
- Pois escrevo no blogue umas brincadeiras, e talvez por causa disso vão lá umas gajas. Quer você saber ...
Salva-me um outro conhecido que entra, e a quem aceno com urgência fingida. Desculpo-me. Despeço-me. O que chegou, talvez porque começa logo a contar que foi ao médico, por causa daquela pontada que lhe dá no lado esquerdo, não estranha o meu modo. Veio para tomar o cafezinho. Descafeinado. Com um pastel de nata. Hábito velho. E um cigarrinho, quando fumava. Felizmente perdeu o vício. Faz muito mal. Começou aos dez anos. Foi sorte não ter dado cabo dos pulmões. Antes do almoço ainda vai à farmácia, a ver se lhe aviam a receita dos outros comprimidos. E tem de passar pelo Sousa, que ontem foi à Espanha buscar presuntos. A Fermoselle ou a Zamora, não sabe ao certo. Que o Sousa é um bocado assim, sempre com segredos.
- Melhor que o de Lamego. Você gosta de presunto?
Ah! Participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espíritos superiores."


in Pó, Cinzas e Recordações - Quetzal, 2015