domingo, outubro 31

A pedra angular

Ainda haverá namoro? O namoro romântico, cheio de tabus, preconceitos, muros, insatisfações e esperanças?
Pergunto isto porque venho de um longínquo antigamente e é apropriado fingir  ignorância acerca das coisas da modernidade, mas claro que sei, já não há namoro. Há relações, arranjos práticos baseados no interesse e na utilidade. Paixão? Loucuras? Arroubos? O que se vive no cinema e na têvê pelos jeitos chega e sobra. Um ou outro tolo ainda mandará flores, uma ou outra ingénua sonhará em fazer ninho, mas o corrente, o que apercebo à minha volta,  é de um friamente calculado pragmatismo.
Virá daí felicidade? Não creio. Uns anos de festa? Por certo. Mas nessa pedreira não se talha a pedra angular da sociedade.

sábado, outubro 30

Manhã de chuva


Olhei para os montes, nublados e cinzentos. Olhei para a rua, onde os vizinhos encostaram uma fileira de abóboras contra o muro. Sopra um vento que ainda não é de tempestade, mas já  de mau agouro, empurrando nuvens que vão descarregar as águas do Dilúvio.
Olho as nozes no prato e um relâmpago da memória traz-me uma manhã da infância, revejo as nogueiras antigas na encosta junto da horta. Sentado no chão, examino os deditos que não conseguem retirar aquela casca que os deixa melados e com um sujidade verde.
A rádio fala de explosivos, terrorismo, o tsunami em Sumatra, mas porque não atento oiço palavras soltas, vazias de sentido, só ruído. Os gatos aninharam-se contra a caldeira do aquecimento. A água enche o pátio. Pancadas de um machado a rachar lenha. Vozes indistintas. Passos. O cheiro penetrante de um lume de estevas.
Como é longa uma manhã assim.

quinta-feira, outubro 28

Motivo


Confidência recebida? Ficção que se inventou? Miscelânea do acontecido e do imaginado? Tudo isso, leitor/a, importa menos do que a sua reacção ao final da história, o que vai pensar, e de que modo isto o/a toca ou não.

"Casaram novinhos", dizia a mãe dela. De facto pouco passavam dos vinte, mas tinha sido paixão de verdade, com febre, urgências e loucuras. Num único ponto, o do sexo, foram pouco a pouco descobrindo diferença de interesses, mas, também pouco a pouco, aprenderam a respeitar e a aceitar.
Cedeu ele. E como se o Destino o quisesse premiar pelos anos de fidelidade e paciência, encontrou na amante a satisfação de todos os seus desejos e fantasias. Todos. Era vida de risco, vida dupla, dolorosa no ponto em que o seu amor pela mulher continuava verdadeiro e profundo, e na amante não via mais que um partner in crime.
Voltou o Destino a intervir, desta vez sem prémio, antes com severidade de juiz. Descobriu a mulher a traição, confessou ele a culpa e fez promessa de que era caso arrumado. Pediu, sim, que pudesse explicar à amante o sucedido e despedir-se dela sem brusquidão.
Concordou a mulher. Passaram os anos, nunca mais foi o passado assunto de conversa ou desavença. Só quando de longe a longe acontecia falar-se de uma Mónica  - actriz do cinema, personagem da televisão – involuntariamente sentiam um alarme, um ligeiro tremor.
Casal na meia-idade, ganharam o hábito de à sexta-feira, como que para encerrar a semana de trabalho, jantarem no mesmo restaurante. Foi aí que, conta ele, tempos atrás, sem que possa adivinhar a razão que o impeliu a fazê-lo, se dirigiu inesperadamente à mulher:
- Nunca to disse, mas tenho remorso daquilo.
Ela sorriu, encarou-o, apertou-lhe a mão:
- Motivo tinhas tu de sobra.
Ao assunto não voltaram. Talvez não se lhes leia no rosto nem no modo, mas amam-se e sabem-se felizes.

quarta-feira, outubro 27

No começo do dia

Dois casais idosos. Eu, idoso também, estou ali sorridente, um exterior de cortesia, o íntimo assombrado com o que uma conversa deixa transparecer de medos da alma e vácuos da inteligência.
Cresceram, trabalharam, fornicaram, estão perto do fim, e de que falam? O que os ocupa?
O calor do Verão passado, os assaltos, a vizinha no hospital, que ainda são muitas as moscas, os pés inchados, os comprimidos castanhos que agora são azuis..
Isto foi anteontem à noite. Ontem almocei com um casal jovem. Estão a crescer, trabalham, fornicam. Oiço-os atento. E de que falam? Do Opel que vão comprar. Que estiveram nos Açores e lá é muito bonito.  Para o ano voltam. Viram as baleias. Que lhes parece que as coisas não estão tão más como se diz. Mais um mesito e vão esquiar em Andorra.

Começo o dia perguntando-me porque recordo o que me aborreceu ou achei sem interesse, e assustado com a probabilidade de que o vazio alheio espelhe o meu próprio.

segunda-feira, outubro 25

Esquerda, volver!

Uns gritam-no, para que o mundo saiba que são da Esquerda. Dizem outros que são da Direita. Há-os do Centro, há os hesitantes, há a massa anónima que manda no voto e a quem os lados interessam muito menos do que o pão-nosso.
Na juventude, com pressa de salvar o mundo, fui da Esquerda, mas tão crítico que os camaradas, erguendo o punho em sinal da cruz, fugiam de mim como da peçonha. Da Direita nunca fui, porque nela, entre os bons, assenta um tipo de gente que me põe a vomitar do corpo e da alma.
Continuo assim a ir sem pertenças, apoios, ou fanatismos, olhando em redor, ora divertido com as carambolas que dão uns e outros, sofrendo de vez em quando com o que não posso remediar.
Ocorre-me isto a propósito de uma entrevista com Jan Fleischhauer, homem da Direita e redactor do muito liberal semanário alemão Der Spiegel. Dessa entrevista retiro estas passagens:
- Porque razão se sente a Esquerda moralmente superior?
- Porque para a Esquerda é essa a única via justa. Que pode haver de melhor do que nos sentirmos moralmente superiores? Nesse sentimento baseia a Esquerda a sua pretensão de não agir para o seu próprio interesse, mas de fazê-lo para o interesse de outros. Um fingimento.
- Porque será que a Esquerda tão dificilmente consegue rir de si própria?
- Porque que luta diariamente contra o Mal. Cada dia pode ser o Dia de Juízo. Há constantemente forças poderosas, como o Capital, que têm por único fito esmagar a Esquerda.
Fleischhauer fazia ainda interessantes considerações sobre como reputados políticos de Esquerda, por exemplo o ex-chanceler Gerhard Schröder e o ex-ministro Joschka Ficher ganham a vida como representantes de poderosos grupos industriais; e outros comentários sobre a contradição das vidas que os líderes esquerdistas levam e aquela que pretendem levar.
Lida a entrevista, de pronto me vieram à mente umas quantas figuras de salvadores deste nosso desgraçado país.

domingo, outubro 24

O vento e os moinhos de D. Quixote

Porque se me enevoa o pensamento com os músicos, as madames caridosas e os milionários que "acodem" aos pretinhos desde o Haiti à África. Porque sobremodo me irritam os caros, e provadamente ineficazes, moinhos de vento que poluem a paisagem. Porque suporto com dificuldade as tolices dos chamados defensores verdes da Natureza e semelhantes. Por tudo isso e mais é com satisfação que traduzo parte do editorial do semanário holandês Elsevier do passado dia 2, sobre o novo e supremamente ecológico navio que Greenpeace mandou construir pela bela soma de 50 milhões de dólares:

"[…] O navio, segundo a reportagem do (jornal) de Volkskrant, dispõe de velas para uma propulsão não poluidora. 'Queríamos desta vez, para servir de exemplo, um verdadeiro navio à vela', afirma Joris Thijssen, director da campanha de Greenpeace. Belo exemplo, mas não tanto como isso. O veleiro acha-se equipado de motores eléctricos de modo a dar uma ajudinha ao vento. Parece uma solução limpa, mas esses motores eléctricos, por sua vez, são accionados por um 'sujo' motor diesel, o qual, aliás também pode accionar directamente a hélice. O que de certeza acontecerá com frequência. E agora a surpresa. Porque é que Greenpeace não equipou o navio com moinhos de vento? 'Também pensámos em moinhos de vento para accionar os motores eléctricos – afirma Mark Leslie-Miller, o designer do navio – mas isso não forneceria energia suficiente'. Ora se mesmo Greenpeace considera os moinhos de vento como solução impraticável para o seu 'navio exemplar', talvez seja a altura do governo deixar de gastar milhares de milhões com os parques eólicos."

Ámen

sexta-feira, outubro 22

Desafinação

Ernest Hemingway, William Saroyan. Importantes na minha adolescência, com os anos foram perdendo o brilho e hoje são apenas figuras vagas no pano de fundo das leituras que se recordam.
Pessoalmente eram ambos sujeitos truculentos, desagradáveis no contacto e em extremo cheios de si próprios. Odiavam-se. Se por acaso se encontravam num bar, dava porrada, e Saroyan, fraco dos músculos, cobarde por natureza, deitava a fugir.
Por vezes a zaragata continuava nos jornais, donde tiro esta frase de Hemingway: :" Mr. Saroyan… You are bright. But you are not that bright, Mr. Saroyan… Also your ear isn't so good. And a good ear in a writer is like a good left hand in a fighter".
É aqui que eu queria chegar: prosa vazia de sentido já é mau; prosa desafinada é pior; vazia e desafinada é lixo.

quinta-feira, outubro 21

Imagem

- Era um sábio! E então de uma cultura! Quando lhe falávamos tinha-se a impressão de beber sabedoria!
É tique de que me não livro: começam eles assim e vão-se-me os olhos a fixar um ponto alto das suas testas, o que lhes dá a ideia de que continuo a encará-los e me impede de procurar distracção no tecto.
- Um grande senhor! E então de uma gentileza!
Esta achega é da cara-metade e eu, ao sentir que involuntariamente se me franzem os lábios, arrepanho-os pronto numa careta de assentimento. Há uma pausa, ele retira os óculos com um gesto largo e, como se estivéssemos os três num palco, dá deixa à  senhora:
- De facto! Homem de grande valor! Uma personalidade!
Pausa de novo, esquece que vai na terceira ou quarta repetição, prossegue: - E então de uma cultura! Quando lhe falávamos tinha-se a impressão de beber sabedoria!
Ela não vai ficar atrás, aponta-nos o dedo sublinhando o superlativo:
- Personalidade fortíssima!
Isto dura há quase uma hora, chegamos ao ponto em que me vem um começo de tontura e deixo de ouvi-los, refugio-me na memória do falecido. Não era sábio, nem culto, nem gentil, mas um ser traumatizado, doentiamente hesitante, sofrendo de medos irracionais,  rara sovinice e um pendor de crueldade. Todavia, neste caso e tantos outros, por certo importa menos a pessoa que fomos, do que a imagem que de nós guardam os tolos.

quarta-feira, outubro 20

Bucolismo


Em miúdo acreditava, comecei depois a desconfiar e desde então a minha surpresa aumenta quando oiço ou leio o desfiar sobre as coisas pastoris e boas da vida da aldeia. O solzinho, o ar puro; o ti Alberto que aos noventa todos os dias cava a horta; a Gervásia que faz alheiras à moda antiga; o forno de lenha onde a Laura e a irmã cozem pães de centeio, grandes como rodas de carro, iguaizinhos aos das nossas avós; a rapaziada de calças arregaçadas na pisa das uvas.
Babam-se jornais e revistas a acentuar a "autenticidade" deste viver, pergunta a televisão a gerontes surdos se lhes agradaria a vida fora daqui; aparecem uns jipes de mirones citadinos a fotografar isto, aquilo, e acham "muito típicos" os casebres arruinados, a fonte velha, as pedras do lagar, aquele castanheiro.
A aldeia? Ó senhores, deixem-se de histórias, não nos incomodem nem venham acordar a sonolência a que nos obrigamos para nos podermos aguentar uns aos outros. Dando-nos os bons-dias, conversando à esquina sobre o tempo, a amêndoa e a carestia, enquanto esperamos o camião do padeiro. Sorrindo e batendo nas costas do filho da puta que à noite empurra o contentor do lixo para a nossa parede. Sorrindo ao filho da puta que com ácido queimou as raízes da oliveira que lhe  sombreava o quintal. Sorrindo ao filho da puta que desvia a água da rega. Sorrindo. Sorrindo. Sorrindo e falando manso à grandessíssima que manda o filho mijar à nossa porta, porque a incomoda o ladrar do cão.
Sorrindo e sabendo uns dos outros que não há casa sem pistola.

terça-feira, outubro 19

Palavras de conforto


Palavras de conforto. Como escrevê-las aprendi eu, mas isso é o que menos conta, pois bem ou mal escritas, simples ou elevadas, nada lhes garante o resultado. Quando sei um amigo em dor ou desespero, logo elas me ocorrem, e raro me pergunto se serão bem-vindas ou recebidas como um incómodo, uma ingerência.
Ultimamente, porém, tem-me acontecido querer demonstrar solidariedade e sentir que o meu intento é tomado por descabido, ou que esbarro como que contra um muro de indiferença. Fora de dúvida todos temos direito a guardar para nós próprios o que nos cabe de sofrimento e solidão, mas é desavisado preferir o escuro da cela ao raio de luz que alguém nos quer trazer.  

segunda-feira, outubro 18

Desigualdade

Somos todos iguais? Parece que dizem isso e que há quem o contradiga. Certo é que não nos criamos comendo todos na mesma manjedoura e bebendo a água do mesmo poço. Há depois as diferenças da cabecinha, do dinheiro, do bater do coração, dos cheiros que entram pelo nariz, dos ruídos da fala, das vibrações.
Ocorre-me isto ao pensar no ferrabrás que a meio da tarde de ontem, ainda pesado do almoço e cheirando a aguardente, inquiriu cortês da minha saúde e disposição, entrou de seguida a explicar que só tinha a quarta classe de antigamente mas corrido muito mundo e tratado com gente de peso. Fora isso dera-lhe Deus Nosso Senhor mais que o entendimento preciso para acompanhar o que acontece cá, no estrangeiro e na política.
Sorri, acenei que sim. Baixou ele os óculos de sol que trazia à moderna na cabeleira, diminuiu o passo que nos separava, só não me tocou com o dedo porque deve ter traduzido bem a expressão do meu rosto. Perguntou então se sabia eu que somos todos iguais, e lá por ter escrito dois ou três livros não fosse julgar…
O compincha baixou a janela do jipe e perguntou-lhe se ia ou ficava. Sorriu e fez um aceno, virou as costas, deixando-me com a melancólica certeza da nossa desigualdade.

sábado, outubro 16

Os Gorazes

Fomos ontem e hoje à Feira dos Gorazes em Mogadouro. Feira de ano, coisa grande nos tempos de antigamente, quando se falava dela com o assombro de quem tinha visitado a exposição mundial. Ia-se aos Gorazes para a compra de bestas, alfaias e adubos, encontrar parentes e comer chicha, mas sobretudo para, com autoridade, se poder depois dizer que tinha sido feira de respeito e na nação inteira nenhuma se lhe comparava.
Conheci-a em miúdo, há mais de um século. Guardo a saudade e entristece-me  a recordação, mas tenho siso bastante para não romantizar o que foi. Tão-pouco darei voz às impressões de agora, criticar os modos, zombar da modernice tristonha dos que ainda não têm história e se arrastam de um lado para o outro, fardados de Adidas, a mulher ao lado, os putos atrás. A ver. A olhar. A olhar sem ver a fila de tractores gigantes, a aparelhagem que mete impressão. Pares de idosos mais antigos do que eu, desnorteados, perguntando onde são as oliveiras e se a mulher dos frangos que ontem estava ali já terá ido embora.
Os feirantes acham que é pouca a gente, o povo diz que está tudo mais caro, felizmente os restaurantes enchem e são muitos, distingue-os a fala, os tripeiros, os franciús e os leoneses que vieram para comer a posta.
Amanhã é o último dos três dias. Depois vão-se fazer as contas e diremos uns aos outros que para o ano será melhor.  

quinta-feira, outubro 14

"Armas"


Tem acontecido em Rotterdam e arredores, a Polícia avisa, mas recusa detalhes sobre a etnia dos inventores da "arma", não vão eles mover-lhe um processo por discriminação.
Vai você descansado e calmo no seu carro, quando de súbito uns "brincalhões" se lembram de atirar uns quantos ovos contra o pára-brisas. Num reflexo compreensível você acciona os limpa-vidros e dá-se conta que a mistura de água e detergente provoca uma "sopa" que reduz a visibilidade a zero. Você pára. Atrás de si pára o carro dos cúmplices dos "brincalhões", que lhe apontam a pistola, levam a carteira e o mais que houver.
Conselho da Polícia: quando lhe atirarem os ovos não limpe, porque com um pára-brisas sujo sempre verá melhor.

PS. Se a invenção ainda cá não chegou, de certeza não tarda. E mulher avisada vale por dois homens.

quarta-feira, outubro 13

A Holanda em mudança

Será empossado amanhã o novo governo holandês, acerca de cuja política o primeiro- ministro, Mark Rutte, já antes tinha anunciado que, para a Direita, seria "de lamber os dedos". E assim parece que vai ser, pondo fim à supremacia do partido trabalhista (PvdA) cujos resultados, política e socialmente não foram dos melhores, tendo contribuído para a actual polarização e para o êxito eleitoral do partido de Geert Wilders.
Vai haver mudança no  "carinho" para com os imigrantes islamitas; vai haver mudança na discriminação positiva; as boas almas já aflitas de que entre os doze novos ministros apenas três são mulheres, ao que Rutte respondeu que os critérios da escolha foram a competência e a experiência, não o sexo.
Sim, muita coisa vai mudar. O facto de Geert Wilders estar actualmente a ser julgado por supostamente "ter incitado ao ódio contra os islamistas",  levou Ayaan Hirsi Ali, num interessante artigo publicado no Wall Street Journal de ontem, a afirmar que não é impensável que venha a haver violentos confrontos entre o milhão de islamistas actualmente nos Países Baixos e o quase milhão e meio de eleitores que votaram no PVV de Wilders.
Interroga-se Hirsi Ali sobre como é possível que "numa democracia europeia adulta um membro do parlamento possa ser julgado devido aos seus pontos de vista políticos sobre um dos mais prementes assuntos deste tempo, a saber: o fundamentalismo islâmico."
Segundo Hirsi Ali há para tal três razões. Em primeiro lugar o facto de que a Holanda tem dificuldade em aceitar opiniões que diferem em demasia do consenso. Contra isso, a única resposta das elites é "a perigosa ideia da tolerância".
Uma outra razão para esse processo é o facto de que nos Países Baixos os islamitas são um bloco político cada vez mais poderoso, e o qual tem de ser levado em conta. "Durante as eleições autárquicas de 2006 os islamitas formaram pela primeira vez um bloco com suficiente poder eleitoral para aniquilar ou assegurar a vitória de qualquer partido."
O último motivo para o processo Wilders é a pressão das organizações islamitas estrangeiras junto dos países europeus para que seja evitado o debate acerca do Islão. Uma das estratégias dessas organizações é conseguir, junto da União Europeia, que se torne punível a "incitação ao ódio."

Seja como for, durante o último meio século em que a tenho acompanhado, nunca a política interna holandesa foi tão interessante como é neste momento, e com igual promessa para o tempo a vir.

terça-feira, outubro 12

Olhos nos olhos

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Ao longo de quinze anos ou mais, ao romper do dia, vezes sem conta ouvi o seu tropear na calçada. Ritmado, convidando à paz como o primeiro toque do sino.
Puxou arados na lavra, carroças de azeitona e amêndoa, toros de lenha, estrume, estevas para o forno, fachas de palha, pedregulhos. Mas a idade não perdoa. Quem perde a força perde o préstimo. Venderam-na para o matadouro e, porque dava menos incómodo que deitá-los ao lixo, deixaram-lhe a albarda esfarrapada e os estribos ferrugentos.
Tirei-lhe o retrato para recordação. Depois, olhos nos olhos, acenámo-nos a despedida .

segunda-feira, outubro 11

Peso e medida

Boas histórias, as que me acontecem mas não posso contar, pois entrando nos detalhes criava inimigos, se os disfarçasse lá se ia o clou.
No que deveria ser paz bucólica, e para outros com certeza é, raro passa manhã, tarde ou noite que não me veja metido em charadas que vão do cómico ao estúpido, da tragédia fingida ao teatro burlesco, da dor escondida à confidência que seria bem aceite na televisão.
Dava um livro? Pois dava, mas seria preciso ter a temeridade juvenil,  aquela febre que põe de lado a obrigação de bem pesar e bem medir.
Infelizmente, escrito com peso e medida não há livro que valha a pena ler.

sábado, outubro 9

"Até"

A diferença entre nós é quase de cinquenta anos. Recordo bem o puto ranhoso e rameloso que foi, acho graça ao burguês em que se tornou e aos ares que toma, a jovialidade com que disfarça o pouco que sabe e alardeia o muito que ganhou.
Esse muito, acha ele, justifica uma familiaridade tola e, se há terceiros, o à-vontade de me apontar com o dedo, arrotando: "Até já li um livro dele!"
A isso segue-se a informação de que encontrou "um erro de palmatória",  acrescentando: "E então quando é que vai corrigir a data lá no tal livro? A feira sempre foi em Outubro, e pôs Novembro!"
Gargalha satisfeito. Eu sorrio e no íntimo desculpo-o, acho graça àquele "até" e ao "lá no tal livro". Talvez também porque continuo a ver nele o puto que foi.

sexta-feira, outubro 8

Estender a mão

Acontece em todas as vidas, aquele momento em que nos perguntamos porque não estendemos a mão. Esperamos que seja o outro a fazê-lo primeiro? Será preguiça? Orgulho tolo? Desleixo? Birra infantil?
Nascem as diferenças e os diferendos por um nada, alguns parecem de geração espontânea, outros surgem de tal modo nevoentos que não se lhes distinguem motivos ou razões. E então vai-se adiando, esperando, pouco a pouco esquecendo, de longe a longe sentindo uma ponta de remorso, até que se faz tarde e fica para trás the point of no return.
É assim para os amores, as amizades, as simpatias. É assim e é pena, porque então muito se perde que tinha valor, muito se esquece que se deveria recordar.

quinta-feira, outubro 7

Quinta, dia de caça

Saíam antes da missa com dois ou três cães, a caçadeira calibre doze ao ombro, um naco de pão e queijo na saca a pender do cinto, os cartuchos em volta da barriga. Regressavam contentes, enfeitados de coelhos e perdizes, às vezes uma lebre que avultava pelo tamanho. Isso no tempo em que eram grandes as searas, muita a caça, simples as pessoas e os costumes.
Os de hoje vão de carrinha, a espingarda escondida, se adregam matar algum coelhito embrulham-no num saco de plástico para que ninguém veja. Perdizes não há.
Os da cidade, esses, vestidos de camuflagem e chapéus de cobói, andam desatinados de um lado para o outro em caravanas de jipes, os cães em atrelados. Buzinam. Os motores roncam. Param aqui e ali em consulta, desdobram mapas, tiram binóculos,  investigam as encostas e gesticulam para todos os lados.
Por volta da uma vão a Carviçais almoçar n' O Artur, debitam lá aos gritos e gargalhadas que isto por aqui está uma merda, caçar é na Espanha. Depois, empanturrados de posta mirandesa e vermelhuscos da pinga, um ou outro de charuto, cálice de aguardente na mão, fumam com pose encostados aos jipes.
…………
A fotografia mostra o senhor Hermínio, que Deus tenha, nosso vizinho, bom carpinteiro,  caçador emérito. Tirei-a uma manhã de domingo, em Setembro de 1972, e recordo que ma agradeceu com duas perdizes.
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quarta-feira, outubro 6

Força viva

A tentação continua grande, resisto, de vez em quando peco. Retratos "a la minuta", parecem simples de tirar mas são os que mais custam, o resultado nunca satisfaz. É lento e trabalhoso acertar na grossura das linhas, escolher os detalhes, harmonizar as cores, equilibrar os volumes, as sombras, a luz.
Fecho os olhos para melhor "chamar" o personagem. Feições grosseiras, Cabeleira farta, ar contente de si, o modo vesgo como encara desdiz o sorriso que quer simpático. Caminha de lado, braços pendentes, o dorso numa corcunda, o olhar inquieto de quem teme contratempo ou prejuízo.
Casou tarde, mas com mulher que tem de seu. Todo-o-terreno e Mercedes na garagem. É amigo do padre, do notário, do gerente do banco, do capitão da Guarda. Caçam juntos, fazem umas patuscadas,  dele é a memorável expressão: "Cá na terra somos uma força viva!

domingo, outubro 3

A veia

Ouve-se, umas vezes dá para rir, outras aborrece, de quando em quando é um pequeno choque.
Estamos em conversa amena ao fim da tarde, dois idosos falando do antigamente e do que já não é. Que de facto nunca foi, mas conversa destas é menos diálogo do que convenção, a tudo digo que sim, que na verdade assim era, tudo melhor, muito melhor, abano tanto a cabeça em assentimento que me dou conta do exagero.
- Salazar faz muita falta. Quem como nós viveu nesse tempo é que sabe. Havia decência, moralidade, as pessoas respeitavam, cada um conhecia o seu lugar.
Aceno que sim, franzo os lábios,  mantenho o sério de circunstância.
- E o 25 de Abril terá feito algum bem, trouxe as pensões e os subsídios, mas o que se vê na política, o venha a nós, a roubalheira!
O meu gesto repete a concordância e ela salta para os malefícios da televisão, as porcarias dos programas, as poucas-vergonhas, fosse no tempo do Salazar iam parar à cadeia.
Suspiramos ambos, olhamos em redor, tenho ideia de que como afabilidade já chega e com uma tossidela vou preparar a despedida.
Mas ela tem ainda a sua viuvez de há poucos meses. Fala, compungida, da solidão e de não ter filhos, de como lhe falta a companhia que ele era, bom, trabalhador, levava-a às feiras, de vez em quando ao Porto.
A minha atenção deve ter diminuído, porque sobressalto ao ouvi-la repetir que quase até ao fim tinham tido "vida sexual", se não fosse o ele ter começado a sofrer da "veia"...
Compreendi mal e suponho problemas de varizes, da circulação, mas ela, com uma desenvoltura que desdiz o seu antagonismo da modernidade, aponta para a minha genitália.
A veia, um neologismo.