Talvez porque no Portugal do tempo em que vim ao mundo e me criei ela era
uma miragem, coisa com que se sonha mas mal se imagina, e já tinha vinte anos
quando finalmente a conheci, a liberdade de expressão é para mim um direito
essencial, sagrado, indiscutível.
Naquelas horas em que resmungo sobre o muito que o 25 de Abril nos poderia
ter trazido e não trouxe, e o pouco com que temos de nos contentar, sinto arrepios
à ideia do que significaria voltarmos a um regime autoritário e a um tempo de
censura, mas logo me conforto com a ideia de que não será de um dia para o
outro que isso pode acontecer. E porque segundo consta ainda vai demorar a que
a China refine e ponha à venda as suas técnicas de controlo dos cidadãos, para
já vale o ditado de que enquanto o pau vai e vem folgam as costas.
Contudo, dado nunca haver bela sem senão, a euforia que me causa a
liberdade de dizer o que penso e o que sinto, é temperada pelo modo como tantos
dela se valem para porem o mundo ao corrente das suas, algumas vezes legítimas
frustrações e raivas, mas num tom que irremediavelmente traz à memória a
latrina e o esgoto. Entristecem-me e, por que não confessá-lo, também me
assustam tantos comentários que leio na internet, nos jornais, não só pelo que
revelam dos subterrâneos de algumas almas, mas pela quase certeza que dão
de que a sociedade em que julgamos viver é uma de aparências, e Deus nos guarde
do momento em que essa mortificada gente possa traduzir em actos o que por
enquanto são só pejorativos. E se bem que a certas horas me diga que devo
acalmar o exagero, pois nunca será nem tanto ao mar, nem tanto à terra, no
íntimo não consigo libertar-me de um sentimento que em simultâneo é de pena e
de irritação. De pena, porque numa sociedade medianamente feliz, medianamente
civilizada, os comentários poderão ser venenosos, agressivos e maléficos, mas
só de longe a longe descem ao reles, e quando isso acontece é como se se
ouvisse uma campainha a reprovar o desconchavo. Infelizmente, numa sociedade
onde as razões de tristeza sobram, a esperança é fraca, o medo uma companhia de
todas as horas, há poucas possibilidades de a breve termo se tornar exemplar
nas boas maneiras.
Assim sendo e porque o remédio demora, talvez faça sentido que para
canalizar noutra direcção as raivas e desesperos que nos apoquentam se estimule
a prática do tiro aos pratos. Esse ruidoso mas pacífico desporto dá grande
satisfação quando o tiro acerta e se vê o prato desfazer-se em estilhaços.