terça-feira, fevereiro 12

Ninguém quer os milhões?


Ninguém quer os milhões?
Nos últimos tempos o meu subconsciente entretém-se a fazer curiosas analogias, e é assim que ao abrir o jornal, atentando nos cabeçalhos, involuntariamente recordo Saddam Hussein, que ao anunciar a Primeira Guerra do Golfo, em 1991, declarou que essa seria “a Mãe de todas as batalhas.” Quase em simultâneo vem-me à lembrança uma famosa telenovela americana dos anos 60, Peyton Place, cujos episódios eram sempre precedidos por uma voz sonora a anunciar: “Esta é a continuação da história de Peyton Place!”.
Nos casos de corrupção que vai para três anos nos entretêm, se ainda demorará a que cheguemos ao momento em que se possa falar da “Mãe de todas as batalhas judiciais”, não há dúvida que estão presentes os elementos de uma excepcional e continuada telenovela.
De facto só a guionista de génio ocorreria dar a um actor de primeiro plano o improvável nome de Sócrates e, subtilmente, conotar outro aos fundamentos da religião, nomeando-o Espírito Santo. Talento há também na escolha do nome dos papéis secundários: Vara, Granadeiro, um Bava – cómico, se pronunciado à maneira de Viana – um João Perna, carácter finamente retratado e, tal um Sancho Pança da modernidade, piscando o olho quando lhe mandam que meta garrafas de vinho em envelopes e não se esqueça de os fechar com fita-cola.
Saliente no guião é a extraordinária variedade de cenas, figurantes e locais: da Covilhã salta-se para Lisboa, Paris, Veneza, Venezuela, Nova Iorque, Baleares. Ora assistimos à apresentação de um best-seller com Presidentes da República, ora é um mundo de gente entusiasmada a gritar calorosos vivas à porta de uma cadeia. Logo a seguir, entre mãe e filho, um diálogo que não ficaria mal numa peça do teatro absurdo de Ionesco: ela a jurar que está “depenadinha”, ele a dizer que compreende, mas não se aflija, daí a nada lhe mandará o Perna com os “terrenos” que pede.
O desenrolar dos episódios ultrapassou há muito o sensacional, e a tensão irá aumentando até ao minuto em que o juiz anuncie a sentença. Certo do vazio que  vou sentir, e com receio de que baixe demasiado o nível de adrenalina a que esta telenovela me habituou, ando já ocupado com a próxima: a dos quarenta ou cinquenta milhões de que ninguém quer ser dono.
Imagino as cenas em casa do ex-ministro, do jornalista, do deputado, as esposas a dizer-lhes que mostrem coragem e corram a levantar a massa, porque a honra já a perderam, mas pode ser que o benfeitor se cale, e então seria pena perderem também o dinheiro.