domingo, maio 30

Cada cruz tem o seu peso (hoje no CM)

Há daqueles casos que nos transtornam de tal modo que demora a que a aflição acalme, mas fica deles como que um nevoeiro de impressões desencontradas, memórias incómodas, vergonha, remorso. Nevoeiro que felizmente tem alturas de ir diminuindo e desaparece, noutras cai no esquecimento, mas ai de ti se ele te envolve e sufoca nas horas brancas da insónia, quando os males, as culpas e vergonhas te fazem sentir encurralado, indefeso contra as lanças que te ameaçam.

Não foi caso único, as circunstâncias e as épocas podem variar, mas pesada é a cruz para quem amaldiçoa o destino que lhe coube, sofre em solidão e custe o que custar a todos os momentos tem de manter as aparências, desempenhar o seu papel, fazer de conta.

Em pequeno metia-me medo, senti pena quando soube a história de tão triste vida, mas foi um murro no estômago ouvir de uma amiga sua, irmã no infortúnio e única confidente, quanto ela sofrera e tivera de ocultar para manter intocável a imagem de "senhora professora", no viver rude e primitivo de uma aldeia tão longe de tudo que parecia doutro mundo, e talvez fosse.

Tinha chegado ali por cálculo, fingindo que o amor a levara a cair nas graças e nos braços do bazófias, herdeiro dumas quantas quintas e contos, mas seu só era um pedacito de olival, palmo e meio de horta, uma casa que obrigava a passar de largo porque mesmo sem vento lhe caíam telhas.

Cedo descobriu a verdade, mas o mal estava feito, caminho só tinha aquele, escondendo as lágrimas curvou-se ao destino, pariu os filhos, sofreu o calvário, criou a ilusão de uma vida de serena autoridade e mando

Anos a fio não compreendi, e para me certificar que assim era deito mão das fotografias que dela tirei à socapa: estatura mediana, cabelo num puxo, rosto descarnado, olhos de míope, inesperados sapatos de tacão alto e, Primavera, Verão, Outono, Inverno, sempre o mesmo casaco comprido de tecido grosso, gola larga, cor indefinida, provavelmente o mesmo com que tinha chegado e até à hora da morte guardou.

Como não podia enfrentar o traste que lhe desgraçara a vida, o filho mais novo era bombo da festa, e o "Avestruz", que já sofria com a alcunha que lhe valera o extraordinário pescoço, caminhava ao seu lado com ar de escravo à espera do açoite.

Antes de desaparecer sabe Deus para que longes traiu ele o segredo da mãe, contando a razão porque nunca tirava o casaco: é que as suas saias tinha-as ela costurado a vida inteira com calças velhas do figurão que lhe prometera mundos e fundos.

domingo, maio 23

O Leopoldo e os nomes (hoje no CM)

O Leopoldo tem um problema com nomes, a começar pelo seu próprio, pois foi baptizado pelo avô paterno, que tendo estado vidas no que era então o Congo Belga a ouvir fazer-lhe tantos elogios, criara verdadeira idolatria por Leopoldo II, o rei da Bélgica.

Se a escolha fosse sua teria sido Manolo, o nome do outro avô, um galego que no tempo da Guerra Civil fugira de Moneixas, nos fundos da Galiza, para Lisboa, onde à maneira de tantos  começara de pé descalço e falecera quase milionário.

Mas Leopoldo era e Leopoldo continuaria, não se desse o caso de ter casado com a Beatriz, e esta, sensível a modas e americanices, começou a tratá-lo por Leo, de nada adiantando que barafustasse, ela às vezes por troça a chamar-lhe Leo Polvo, pois os seus braços, compridos e magros pareciam tentáculos.

Leo seria, Leo ficou, quando tem de assinar qualquer coisa ressente a velha antipatia pelo  nome, mas a si próprio conforta, lembrando que águas passadas não moem moinhos, e tenta esquecer o aborrecimento.

Porém, na vida dão-se circunstâncias em que nos perguntamos se é questão de mero acaso, ou por detrás delas há uma força, não direi maléfica antes zombeteira, pois em vez de anunciar um perigo parece exceder-se no escárnio.

A desavença começou com a primeira gravidez. O médico tinha-lhes anunciado que era uma menina, estavam no carro a fumar um cigarro e refazer-se da surpresa, quando ele disse que achava Rosalía um lindo nome galego, seria a maneira de honrar o avô Manolo. Beatriz nem o encarou, como se só lhe interessasse o fumo do cigarro, a voz a separar as sílabas:

- A menina vai chamar-se Soraya como a imperatriz do Irão, e com ípsilon, que é a forma correcta.

Assim aconteceu, não se falou mais no caso. Soraya tem agora vinte anos, frequenta um curso de "Termalismo e Bem-Estar", notam-se os seus olhos azuis, mas no mais, aparência, carácter e comportamento é um bocadinho mole, o que Beatriz atribui à genética da avó paterna, uma algarvia a quem culpa de preguiça e obesidade muçulmana.

Há coisa de um mês anunciou que queria apresentar o namorado aos pais, apareceu com ele um domingo à tarde. O jovem, de aspecto simpático, tinha boas maneiras, tudo estava a correr como era de esperar, até ao momento em que Leopoldo, que já sofre de surdez, pediu ao rapaz que repetisse o nome, porque tinha compreendido mal.

- Ken.

- Como o namorado da Barbie, Ken – ajudou Soraya.

Leopoldo sorriu, não comentou. Seria Quem? Khan? Raio de nome. Mas não tinha a ver, era lá com eles.

quinta-feira, maio 20

Férias do pessoal


                                                                             (Clique)

Por motivos de logística este blog encerra hoje temporariamente, e caso não haja empeno de maior voltará a abrir a 1 de Junho.

A todos os que por aqui passam agradeço o interesse e a simpatia, mas também a oportunidade que me têm dado de imaginar que trocamos ideias e opiniões com respeito pelas divergências mútuas.

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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação." 

quarta-feira, maio 19

Um todo uno, eterno, belo e feliz.

"Sobre muitas das recordações da minha infância continua a pesar essa mistura de alegria descuidada e entusiasmo, quase sempre seguida de uma humilhação, de um medo ou um perigo.

Daí talvez que o primeiro dos meus sentimentos conscientes tenha sido o de um constante estado de alerta que, contra vontade e incomodamente, se me tornaria uma segunda natureza.

O avô era a calma, o aconchego. Folheando o jornal sobre a mesa, ou sentados ambos à janela, ele levava-me mansamente a navegar pelo oceano da imaginação, desdobrando a cidade num universo. Mostrava as torres da Sé, dizia-me para olhar bem, contava em sussurros, e eu sem custo distinguia em volta o acampamento dos cruzados que esperavam transporte para a Terra Santa. Via-os em algazarra a correr de lança erguida para a margem, mas subitamente o malabarismo do avô transformava as galés medievais nas caravelas das Descobertas, construídas ali perto nos estaleiros de Massarelos, e íamos nelas a caminho da Índia, sofrendo fome e doenças, naufrágios, até que apercebíamos aliviados uma costa toda de palmeiras, palácios e areia branca.

Tão depressa passeávamos pelas ruas de Goa ou de Calcutá, por entre gente vestida de sedas coloridas, admirando templos dourados, elefantes, tigres em jaulas, como já ele, virando as páginas do tempo e do espaço, nos punha a bordo do lugre de quatro mastros que ancorado ali em frente dava a impressão de que o poderíamos tocar, enorme, todo iluminado, à espera da enchente para ir de viagem.

Icebergs, pescadores solitários na imensidão do mar, auroras polares. Florestas tropicais e rios majestosos. Himalaias. Metrópoles. Exércitos. Castelos onde moravam reis tenebrosos como Ivan da Rússia, o Terrível, ou o nosso Pedro I, o Cru, que aos condenados mandava arrancar o coração pelas costas. A Grécia de Homero e Alexandre Magno, o Egipto dos faraós, as batalhas da Flandres... Maravilhoso caleidoscópio para o garotinho que pouco compreendendo absorvia tudo, e em cuja alma os nomes e os acontecimentos ficavam a ressoar em ecos simultaneamente íntimos e universais, tornando o mar alto, os monarcas, os animais, o nosso largo, a ponte sobre o rio, as fábricas, os carros de bois, num todo uno, eterno, belo e feliz."

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in Ernestina - Quetzal, 2001

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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação."  

terça-feira, maio 18

Mais culto da personalidade


Mocidade Portuguesa - Junho 1941

e aqui

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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação.”

 

segunda-feira, maio 17

Tordesilhas

Para Javier Huerta Calvo

Meu caro Javier,

Escrevo-te de Tordesillas, onde me encontro por razões independentes da minha vontade ou de qualquer simpatia pelo local. Ao passar por aqui vindo de Amsterdam, tinha eu intenção de, em vez de continuar para Portugal, enfiar pela estrada de Madrid e ir fazer-te uma visita. O destino, porém, dispôs doutro modo. No momento em que me encontrava a meter gasolina e a pesar as implicações da minha decisão, fui acometido por um acesso tão repentino e violento de febre que o homem da bomba, dando conta do meu estado, se ofereceu para chamar um médico. Temeroso de me ver sujeito à costumeira dose de antibióticos e esperançado na cura que vem do tempo e do descanso, fui dali para o hotel Los Toreros, onde me encontro desde quarta-feira.

Tudo isso teria sido apenas um ligeiro contratempo, não se tivesse dado o caso de um ancião, empregado do hotel, ter descoberto que a minha presença lhe oferecia a oportunidade de um ajuste de contas histórico.

O hotel Los Toreros, estabelecimento moderno com bar, café, restaurante, pátio sombreado, música permanente e ar condicionado, é o ponto de encontro do jet set de Tordesilhas. É também o local de aparatosas bodas nupciais. Foi assim que, quando no segundo dia me arrisquei a descer à sala de jantar, a encontrei apinhada com uma companhia que festejava um casamento. O empregado em questão informou-sedas minhas melhoras e sentou-me a um canto onde me serviu uma refeição de doente. Depois, olhando satisfeito a sala, afirmou que em parte nenhuma de Espanha se sabia festejar uma boda tão bem como em Tordesilhas. E então em Portugal, onde anos atrás passara duas semanas e nunca mais queria voltar, até se ignorava o que fosse um jantar decente. Comida portuguesa? Pfff...

 O seu sopro manifestava um desdém tão convicto que eu, abalado pela febre e vendo-me ali rodeado de «inimigos», não tive coragem ou força para retorquir.

Durante o almoço do dia seguinte começou ele com a comparação entre a esplendorosa limusina em que o rei Juan Carlos se desloca às solenidades – tão especial que só o Papa tem uma semelhante, mas menos luxuosa – e o carro que transporta o presidente Soares quando em Lisboa há qualquer festejo.

Como a afirmação me não parecesse insultuosa e também porque pouco percebo de limusinas, limitei-me a um aceno de cabeça. Quis ele então saber se era do meu conhecimento que no século XV, em Tordesilhas, Fernando e Isabel de Castela tinham obrigado o rei de Portugal a parar os Descobrimentos.

Com o gosto de finalmente marcar um ponto restabeleci a verdade dos factos, mas para que a minha vitória lhe não parecesse tocada de arrogância, mudei de assunto e pedi-lhe para me trazer uma tigela com água quente e limão para desengordurar os dedos.

É curioso constatar como a auto-satisfação realmente faz empertigar as pessoas.

-  Limão! Água quente! Ainda se usa isso em Portugal?

- Até na Holanda – arrisquei eu.

Não acreditou. Em Portugal, dado o nosso atraso, era provável. Mas na Holanda, país civilizado que ele conhecia da televisão, não era possível. Na Holanda, caballero, como na Espanha, lavavam-se as mãos à mesa com uma toalhinha perfumada. Tirando uma de uma caixa, abrindo-a para que eu visse como se fazia, praticamente me esfregou as mãos com ela. Foi assim que vivi a experiência única de comer codornizes cheirando a Maja e fiz a descoberta de como é repulsivo o Rioja acompanhado de água-de-colónia.

Provavelmente passo aqui mais um dia, e a visita a Madrid fica para outra altura, mas creio que esta foi a primeira e última vez que pus os pés em Los Toreros de Tordesilhas.

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In Mazagran – Quetzal, 2012

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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação."

domingo, maio 16

A verdade das mentiras

Pode ser uma questão de temperamento, da maneira como se foi criado, hábito que se ganhou, verdade é que se há quem seja maníaco a arrumar, outros vão-se desleixando e com o correr do tempo alguns desses, sobretudo se vivem sozinhos, acabam por não se dar conta do desarrumo, e quem os visita pode por delicadeza ou cautela não fazer comentário nem  mostrar-se surpreso, mas as mais das vezes é pocilga a palavra que involuntariamente lhes ocorre para comparação.

Com uma salita, um quarto, cozinha, banheiro, há espaço de sobra na casa onde o Mateus  agora vive, não se desse o caso de que a situação pede o condicional. Haveria espaço, caso ele tivesse outra mentalidade, e ao fim de três anos de matrimónio não se tivesse divorciado de Lavinia, a romena sua namorada e brilhante colega na Politécnica de Bucareste, de quem agora se queixa com o bizarro argumento de que, sem que lhe adivinhasse o motivo, a "desleixada cigana" com quem tinha dado o nó, dum dia para o outro como que encarnara numa espécie de instrutor dos Comandos, maníaca do arrumo e da limpeza, a peguilhar por tudo e nada, aos berros, fazendo comentários cínicos sobre o seu desleixo e até, a gota que à terceira vez fizera vazar o copo, um remoque à sua virilidade.

Conteve-se, não ia ser acusado de machismo ou violência doméstica, e como não era dado a fazer cenas encheu as malas, foi à procura doutro poiso até que o divórcio lhe devolvesse a paz e a liberdade.

Porém, como sabe quem já percorreu essa Via-Dolorosa, um divórcio, e neste caso sendo a outra parte uma romena esperta, quezilenta, muito ciente dos seus direitos, é processo que se arrasta, de modo que ia quase num ano que o Mateus morava na casita que para seu mal - mas na urgência era o que pudera arranjar - ficava num cu de Judas com vista para uma zona de armazéns e fabriquetas, paisagem de excelência para tornar macambúzio o mais assanhado dos optimistas, qualidade que o nosso homem estava longe de possuir.

Preocupados com a sua condição resolveram os amigos surpreendê-lo um sábado à tarde.  Muniram-se de comes e bebes e sem aviso bateram-lhe à porta, que quando finalmente se abriu não lhes reservava apenas uma surpresa, mas três. Em lugar do chiqueiro que esperavam estava tudo um brinco, ao cimo das escadas um Mateus desarranjado mas alegre, por detrás dele uma Lavínia sorridente.

Aqui chegado o contador defronta um dilema: se revela o desfecho deste caso verdadeiro vão achar que mente, se inventa um dirão que exagera.

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"No dia 8 de Maio de 2021, foi promulgada pelo Presidente da República a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” que estabelece um novo Direito de “protecção contra a desinformação”, e que institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos Tribunais, de pessoas singulares ou colectivas que “produzam, reproduzam ou difundam” narrativas consideradas pelo Estado como “desinformação.”