sexta-feira, março 24

Gazelas e panteras

 

Devo dizer que de começo estranhei e a leitura não me entusiasmou. Mas à medida que nela progredia, fui caindo de susto em assombro, menos por culpa da autora, do que pelo transtornado desejo que sempre tenho, ser personagem nas histórias doutrem. Se a coisa me atrai, em vez de ler tresleio, quando dou por mim estou enterrado até às orelhas nas reviravoltas da vida alheia. Mas desta vez exagerei mais do que o costume, fazendo do que lia o pano de fundo da minha alucinação.

Assim me vi num Éden sem passado nem futuro, só presente, abundante de festas e sol, caipirinhas, praias douradas, Joanas púberes e menos púberes, Donatellas maduras, mulatas com o sangue de sete nações, aqui e ali uma gazela, além uma corça, acolá uma pantera.

Estava eu nesse enlevo, certo de que se iriam repetir os gozos dos meus melhores anos, quando em modo igual ao com que Vénus e Ursula Andress ("a major sex symbol of the 1960s and James Bond object of desire in Dr. No") saem das ondas, se ergueu radiante uma jovem esbelta, felina e pernilonga que, estendendo ambas as mãos ...

Os safanões da minha mulher, perguntando se me tinha dado alguma coisa - com os idosos nunca se sabe - demoraram a tirar-me do devaneio, mas por fim, fechando o livro e escondendo a capa, balbuciei que me sentia exausto.

- Leitura interessante?

Tomei o modo enfastiado de quem lê Agustina :

-Asim, assim. Nestes modernos é sexo e mais sexo, droga, bebida, festas... A rapariga escreve escorreito, é original, mostra algum talento...

- Rapariga? Conheces?

Com característica leviandade feminina virou-me as costas, desinteressada da resposta.

Encolhi os ombros e à noite terminei o livro, sonhei o resto. Desde então, quando o abro, elas saem dentre as páginas e dão-me o braço, sussurram que não tenho que ir fazer noventa e três anos. Venda a alma, deixe-me levar, elas me mostrarão como se volta aos trinta.

 *   *   *

A partir de hoje, e até data incerta, este blog não será actualizado. Desculpas a quem o costuma visitar.

 

 

 

 

quinta-feira, março 23

Os deveres da amizade

 

O Quim Barbosa tinha publicado um novo romance - o quinto aos seus trinta anos – e lá fui à sessão de autógrafos cumprir as obrigações de padrinho, fazendo o meu melhor para esconder o fastio que esses ajuntamentos me causam, e manter a careta tola de jovialidade e boa disposição, como se estar ali fosse um privilégio, em vez do frete que não se pode recusar a um afilhado.

Depois de suficientes apertos de mão, beijinhos, frases ocas, fiz valer a idade e procurei uma cadeira, esperançado que o ar de cansaço bastaria para que me deixassem em paz.

Assim fosse, mas a boa sorte pouco durou e adeus sossego, um atrás do outro vinham para mim a sorrir, curiosos se me sentia bem, se aguentava a barulheira, de certeza vinha aí novo livro...

Devo ter dormitado um instante, porque sobressaltei ao ver-me repente abraçado e beijado pela Júlia Valadares, agachada contra mim, a sussurrar que eu desta vez não escapava, ia-me tirar dali e obrigar a cumprir a promessa tantas vezes feita de jantarmos sem mais companhia.

Posto entre a espada e a parede, mas esperançado que desta vez ela não me aborrecesse tanto como da anterior, lá fomos então para a sua última novidade gastronómica, descobrindo para meu pasmo que ali eram tudo verduras, vinho desconheciam, para beber só água ou chá.

Fiz de conta, não dei à Júlia o gosto de me ver irritado, fui gentil e hipócrita, garantindo-lhe que além de satisfazer a minha curiosidade, um estabelecimento daqueles era um bom passo para me convencer a abandonar a carne e as gorduras.

Ela que sim, a sorrir da minha boa-vontade, confessando que escolhera o local com alguma malícia, e na realidade para testar se eu continuava a ser bota-de-elástico.

Mas bota-de-elástico continuarei, não esqueço o nojo do que ali chamavam sobremesa, revira-se-me o estômago se recordo o sabor do chá Oolong.

 

quarta-feira, março 22

terça-feira, março 21

Em Stokmaknes?

 

Que tenha entrado neste blogue porque quis, ou simples acaso, agradeço-lho de igual modo. Sabe porquê? Pelas ilusões que me dá.

Mulher ou homem a começar a vida, na meia idade ou com um pé na cova, imagino-lhe um aspecto físico e cubro-a/o de virtudes. Empresto-lhe também umas quantas qualidades que aprecio no meu semelhante, sobretudo aquelas que em mim escasseiam.

Vive você em Penamacor, Torres Vedras, Manaus, na Ilha do Sal? Em Cascais? Stokmarknes? Que isso não obste. A imagem que de si faço é dinâmica, culta, bem humorada e saudável, cosmopolita. Claro que tem um pendor artístico, gosta de Mahler, possui um refinado humor, valoriza a nuance e o subentendido, leu mais que o bastante. Em certas ocasiões franze o sobrolho com aquilo que escrevo, mas não mo leva a mal, antes pelo contrário, pois pertence ao número dos civilizados que compreendem e aceitam a diversidade dos pontos de vista. De longe a longe sorri comigo.

Anónimo ou quase, silencioso, invisível, presente e contudo distante, você é o perfeito interlocutor e a melhor das companhias.

 

segunda-feira, março 20

Laços

 

Agradável coisa, esta que ultimamente me tem acontecido, pois me estão a sobrar amigos, relações, os conhecidos e até os parentes. Tenho uma vaga ideia da causa desse desmesurado e recente carinho, mas nem por isso deixa de me maravilhar a descoberta de que haja tanta gente que, antes de testemunhá-la, mantenha a amizade e o parentesco numa espécie de longo banho-maria.

Seja como for, de momento é amigos p'ra cá, parentes p'ra lá. Uns brincaram comigo na infância, outros são do liceu, da tropa, do tempo em que morei na Praça da Alegria, em Lisboa. Há um que me conhece da boémia de Berlim, onde nunca estive. Pouco falta a outros para que, esquecidos da idade, jurem que andaram comigo ao colo quando gatinhava no Monte dos Judeus, em Gaia.

Aquele recebeu em tempos uma carta minha, e recorda-a laboriosamente, aproveitando a ocasião para mencionar o erro ortográfico que lá encontrou. Uma outra pede o endereço, para mandar o poema que em 1948 lhe recomendei e que ela guardou na agenda desse ano.

De parentes é também um nunca mais acabar. Primos em quinto, sexto grau, que nos longes do Mato Grosso, da Venezuela, de New Jersey e Sausalito, subitamente se agarram à existência deste familiar, desculpando-se da ignorância do sangue que nos une.

Vale-me a pachorra. Franzo o sobrolho, mas na verdade divirto-me de que gente a quem por urbanidade se dão dois dedos de conversa, familiares e vagos conhecidos, tão inesperadamente transbordem de simpatia.