terça-feira, fevereiro 12

"O anjo pornográfico"


Tinha à volta de cinco anos quando o meu Avô paterno me ensinou a ler e o vício da leitura ficou, verdadeira droga para que não desejo cura. Num passado distante o ritmo dos chutos era dum ou mesmo dois livros por dia, mas há muito  baixou, se bem que a semana raro acaba sem ter lido pelo menos três.
Não esperem agora de mim um sermão sobre os superiores benefícios da leitura, ou o queixoso azedume de que a imensa maioria não lê nem se interessa por livros, pois só um tolo ignora que a leitura é um luxo que exige dois bens sempre escassos: tempo e paz de espírito.
Remediado no mais, nesse particular de tempo e paz de espírito continuo abonado, de modo que uma parte substancial do meu dia vai para a leitura, e de folhetos à Odisseia, de autores suecos com nomes  arrevesados ao sabido Murakami, do Borda d’Água ao Mensageiro de Bragança, se tiver letras e me vier à mão, leio.
Aprendo, divirto-me, emociono-me, às vezes zango-me, barafusto, mas a semana passada, quando abri O Anjo Pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues, de Ruy Castro, foi como se me tivesse calhado a sorte grande, pois há muitos e longos anos não lia um livro que me transportasse para aquele bendito estado de espírito do entusiasmo e da perplexidade da adolescência, quando o tempo pára e, à medida que lemos, somos em simultâneo espectador, personagem, vestimos todas as peles, vivemos todas as emoções.
Dizem os que sabem, que a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante, paráfrase que se pode aplicar à vida de Nelson Rodrigues, à qual nenhum ingrediente parece ter faltado, e todos lhe foram servidos em generosas porções: pobreza, amor, dinheiro, sexo, fama, amizade, êxito, gratidão, doença, tragédias, medo, traições, desastres, teatro, futebol, romances escritos, romances vividos, quase cegueira, generosidade, coragem, rasgos de loucura. E tanto mais que ao fim de três dias, lida a última das quinhentas páginas, custou a recompor-me daquele terramoto de  extraordinárias vivências, inseguro se teria sido apenas a leitura, ou a mágica da escrita realmente me transportara no tempo e no lugar, fazendo-me testemunha ubíqua e privilegiada.
Voltando a mim, dei conta de que já não estava no Rio de Janeiro mas na minha aldeia, com montes ao redor e o ladrar dos cães único sinal de vida. Foi então que mentalmente agradeci a Ruy Castro o belo livro que escreveu, e rezei para que a alma de Nelson Rodrigues tenha encontrado no Céu a paz que lhe faltou na Terra.