O
Abílio e os Demodex
Se há coisa que me
mete confusão é a capacidade que muitas pessoas têm de detalhar em extremo os
tratamentos que fizeram ou andam a fazer, as cirurgias que sofreram, a capacidade
que mostram de recordar, não só os complicados
nomes dos remédios que tomaram, mas também o nome dos seus médicos,
nunca esquecendo que o doutor X ou o Professor Doutor fulano de tal são sempre
dos mais competentes da especialidade. Mencionam depois os laços familiares, anunciando
vagos parentescos, ou referindo-os em pormenor, esclarecendo, por exemplo, que
se trata do sobrinho de um cunhado ou da filha dos vizinhos do terceiro andar.
O Abílio, amigo velho e ligeiramente hipocondríaco, é
desses. Como tem boa memória, gosta de contar e aprecia o detalhe, de tantas
vezes o ouvir sei o nome dos ortopedistas do hospital de Gaia e o dos
cardiologistas que trabalham no de Matosinhos.
Quando lhe deram a reforma, há-de haver sete ou oito
anos, essa particularidade do seu carácter como que acelerou, pois a internet,
que a contragosto usava no escritório, desde então lhe ocupa uma boa parte do tempo.
Diz a esposa, a D. Rosinha, que às vezes o encontra como que hipnotizado a
olhar para o ecrã, a ponto de nem sentir que está ao seu lado, a lembrar-lhe
que são horas da deita.
Conta ela também que no princípio ainda o espiou, suspeitando
que aquele interesse do marido fosse pelas porcarias que há por aí e são a
desgraça de tantas famílias. Felizmente, pôde constatar que não é desses, bem
ao contrário, muitas vezes até se aborrece quando a chama e ela demora a ir ver
os casos extraordinários que descobre e lhe quer mostrar.
Como a esposa se impacienta e no café já poucos o
aturam, fingem ler o jornal, o Abílio, valendo-se da nossa amizade e certo de
que todas as minhas horas são de ócio, fez de mim o seu interlocutor predileto.
Não levou a mal quando lhe pedi que não falasse tanto de
hospitais nem de doenças bizarras, mas dias atrás apareceu-me excitado e com um
inesperado pedido: - Tire os óculos!
Concentrado, examinou-me os olhos com uma lupa, declarando
num tom clínico: - Claro que não se vê! Só de noite.
- O que é que não se vê?
- Os demodex! Está na internet. São uns ácaros que aparecem
nas pestanas quando estamos a dormir, e
por isso ao acordar sentimos comichão nos olhos.
- Está bem, Abílio, vamos mudar de assunto.
De nada adianta, o entusiasmo tornou-o surdo e de um
só fôlego detalha ainda que alguns demodex têm quatro patas, outros oito, e só
medem o terço de um milímetro.