terça-feira, fevereiro 12

O Abílio e os Demodex


O Abílio e os Demodex
Se há coisa que me mete confusão é a capacidade que muitas pessoas têm de detalhar em extremo os tratamentos que fizeram ou andam a fazer, as cirurgias que sofreram, a capacidade que mostram de recordar, não só os complicados  nomes dos remédios que tomaram, mas também o nome dos seus médicos, nunca esquecendo que o doutor X ou o Professor Doutor fulano de tal são sempre dos mais competentes da especialidade. Mencionam depois os laços familiares, anunciando vagos parentescos, ou referindo-os em pormenor, esclarecendo, por exemplo, que se trata do sobrinho de um cunhado ou da filha dos vizinhos do terceiro andar.
O Abílio, amigo velho e ligeiramente hipocondríaco, é desses. Como tem boa memória, gosta de contar e aprecia o detalhe, de tantas vezes o ouvir sei o nome dos ortopedistas do hospital de Gaia e o dos cardiologistas que trabalham no de Matosinhos.
Quando lhe deram a reforma, há-de haver sete ou oito anos, essa particularidade do seu carácter como que acelerou, pois a internet, que a contragosto usava no escritório, desde então lhe ocupa uma boa parte do tempo. Diz a esposa, a D. Rosinha, que às vezes o encontra como que hipnotizado a olhar para o ecrã, a ponto de nem sentir que está ao seu lado, a lembrar-lhe que são horas da deita.
Conta ela também que no princípio ainda o espiou, suspeitando que aquele interesse do marido fosse pelas porcarias que há por aí e são a desgraça de tantas famílias. Felizmente, pôde constatar que não é desses, bem ao contrário, muitas vezes até se aborrece quando a chama e ela demora a ir ver os casos extraordinários que descobre e lhe quer mostrar.
Como a esposa se impacienta e no café já poucos o aturam, fingem ler o jornal, o Abílio, valendo-se da nossa amizade e certo de que todas as minhas horas são de ócio, fez de mim o seu interlocutor predileto.
Não levou a mal quando lhe pedi que não falasse tanto de hospitais nem de doenças bizarras, mas dias atrás apareceu-me excitado e com um inesperado pedido: - Tire os óculos!
Concentrado, examinou-me os olhos com uma lupa, declarando num tom clínico: - Claro que não se vê! Só de noite.
- O que é que não se vê?
- Os demodex! Está na internet. São uns ácaros que aparecem nas  pestanas quando estamos a dormir, e por isso ao acordar sentimos comichão nos olhos.
- Está bem, Abílio, vamos mudar de assunto.
De nada adianta, o entusiasmo tornou-o surdo e de um só fôlego detalha ainda que alguns demodex têm quatro patas, outros oito, e só medem o terço de um milímetro.