quarta-feira, outubro 28

Terras do Demo


Preocupado com a minha segurança ou transtornado da memória, pois com frequência repete a pergunta, o vizinho quer saber se tenho pistola. Respondo que sim, mostro-lhe a Mauser que foi de meu pai, e falamos do tempo.

Não creio ter por aqui inimigos capazes de me esperarem de bacamarte apontado, mas em meios pequenos nunca se sabe. São neles muitas as frustrações, as raivas escondidas, as invejas, os ódios que fervilham sob as cortesias de Nosso Senhor o acompanhe, boas noites nos dê Deus.


Tenho eu em França um amigo que herdou uns hectares de boa vinha no Vouvray e que, depois de trinta anos de trabalho duro, conseguiu tornar-se um reputado éleveur de vinhos de qualidade.

Vive ele com a mulher, o filho e a nora num povoado que, pela força das circunstâncias, foi perdendo gente e onde hoje há pouco mais de uma dúzia de casas habitadas. Vive-se ali em paz, as pessoas ajudam-se, visitam-se, festejam aniversários, trocam presentes, conhecem-se desde a infância, quem por lá passa recebe a impressão de penetrar num modelo de bucolismo.

Tempos atrás foi um golpe num pneu do carro. Parecia de navalha, mas o meu amigo inclinou-se que deveria ter sido coisa acidental. Morreram-se-lhe dois cavalos e a seguir o cão. Depois, uma manhã, para seu grande susto, que aquilo era a sério, deu com as rodas fronteiras do tractor a abanar. Tinham-nas desaparafusado.

Desde então dá tratos à cabeça, perguntando-se quem terá sido e por que razão. Uma dúzia de casas, meia centena de pessoas se tanto, todos conhecidos e amigos...

Quando conversámos sobre o caso estive vai não vai para fazer como o meu vizinho e perguntar-lhe se tinha pistola, mas ele, como que adivinhando a sugestão, sorriu e disse, encolhendo os ombros:

- Meios pequenos, mon cher!... Terras do Demo!