domingo, junho 14

Um dia de temporal


De manhã, antes de saírem de casa ele tinha dito que seria melhor levar guarda-chuvas, porque o dia não passava sem chover. Uma olhadela ao céu fora o bastante para o seu instinto de marinheiro, aqueles pontinhos cinzentos a acumular-se no horizonte não eram barcos, como dissera a sogra, mas as nuvens que agora empurradas pelo vendaval, descarregavam aguaceiros sobre a praia.
A sogra e os miúdos tinham-se abrigado na barraca, os outros correram para o bar. Ele e a mulher, como se a chuva os não molhasse e indiferentes à Otília que de longe berrava para que também se abrigassem, continuavam sentados, imóveis, encaravam-se zangados, quase a explodir, ele a culpá-la pela falta dos guarda-chuvas.
Havia tempo que as brigas eram quase prato diário, regular e fatal como a acção e a reacção das leis da Natureza. Uma palavra, um olhar, às vezes um gesto, uma toalha caída no chão, um palito que ele deixara numa xícara, um copo quebrado, a cinza do cigarro na mesa – e pronto! – rebentava o barulho em menos tempo do que leva a dizê-lo.
Explodiam os insultos, deitavam-se à cara pecados velhos e há muito esquecidos, culpas remotas do tempo em que tinham namorado, mesmo as palavras ternas doutras ocasiões lhes serviam para magoar.
- Não te atrevas, Carolina! Olha que dia mato-te!
Da primeira vez a ameaça teatral tinha-a assustado tanto que fugira para a rua, mas daí em diante, mal ele começava aos saltos, a gritar que a matava, ela ia à cozinha buscar a faca de cortar o peixe e punha-la na mão: - Toma lá!
- Não me tentes, mulher! Olhe que não sei o que pode acontecer! Não me faças perder a cabeça!
Exagerando o tremor pousava a faca sobre a mesa, depois todo agitado enfiava as mãos nos bolsos à procura dos cigarros e do isqueiro, as mais das vezes as zangas terminavam com ele a oferecer-lhe um cigarro, ela aceitava, acendia-lho, saíam depois para o café, um cessar fogo entre duas batalhas.
De longe a longe tinha acontecido cenas assim terem sido a causa indirecta de inesquecíveis jantares e o filho mais velho, o Tito, talvez nunca viesse a saber que fora gerado por descuido numa dessas ocasiões de festa, cheias de promessas, boas intenções, e de nunca mais.
Ainda se ouvia o trovão ao longe, mas o aguaceiro findara de repente, o horizonte mostrava já uma aberta azul. Continuavam defronte um do outro, imóveis, teimosos, a tiritar.
- Tens aí lume? – perguntou ele, mostrando os cigarros encharcados.
Ao mesmo tempo que o agarrava pelo pescoço ela desatou às gargalhadas.