domingo, junho 7

Culpa da Netflix


A Leocádia e o Porfírio sempre gostaram muito de telenovelas, eram mesmo viciados, se por falta de tempo não vissem em cada noite pelo menos duas, costumam dizer que se sentiam  como junkies a quem falta a droga.
Mas os anos passam, os hábitos mudam, pouco a pouco sem que se note os dias ganham um ramerrão e até parece que encurtam, a certa altura deram-se conta que das duas telenovelas só já viam uma, por fim tiveram de confessar que às vezes não compreendiam o que estavam a ver, porque sem dar conta tinham adormecido, perdendo o fio ao enredo.
Sabiam que até certo ponto a culpa era da idade, ambos a meio dos sessenta, mas algumas vezes tinha acontecido dizerem-se que o que estavam a ver eram sempre os mesmos enredos, os mesmos problemas, as vinganças, os homicídios, as traições, os amores falhados.
Mais por hábito do que por interesse olhavam para o ecrã, mas desatentos, às vezes recordando com saudade as telenovelas brasileiras dos anos oitenta, espectaculares, em geral com um suspense tão forte em certos episódios que se dizia que o país inteiro parava para assistir ao desenredo.
Desde que casaram, a Rosalinda e o Adérito vêm sem falha almoçar com eles no último domingo do mês. A ela conhecem-na desde que nasceu, porque é afilhada e se tornou filha adoptiva quando ficou órfã, e ele é tão atento, tão carinhoso, que no princípio até desconfiaram se não seria comédia, mas por fim tiveram de concordar que de facto o rapaz é tão bom como parece, talvez até mais. Quando os ouviu queixar-se de que a televisão os aborrecia, disse logo que lhes oferecia uma assinatura da Netflix, e ao ver que se assustavam sossegou-os que tratava de tudo e assim fez, depois ensinou-lhes como aquilo funcionava, como se escolhiam os filmes e as séries.
No princípio ainda continuaram a ver as notícias, um ou outro programa, mas o resto do tempo ia para as séries da Netflix, fascinados a ponto que quando se davam conta já tinham visto quatro ou cinco episódios seguidos e depois lhes custava a pegar no sono.
Para a Rosalinda foi surpresa quando a madrinha a chamou para lhe mostrar uns apliques, ficou de boca aberta ao ouvi-la queixar-se que coisas não estão a correr bem. O padrinho agora  não larga a televisão, começa logo ao pequeno almoço e isso seria o menos, não se desse o caso que ele ao mesmo tempo que vê lhe explica o que se está a passar e quer que fique ali como se não tivesse mais que fazer.
Ainda se falam, só o preciso, mas na cama já é cada um para o seu lado.