domingo, junho 21

Dia de mercado

Sexta de manhã. Por ser mercado a rua encontrava-se cheia de gente e ela, caminhando devagar, aos empurrões, apanhava bocados de frases, restos de conversa. Um momento antes tinha ouvido um homem desesperado que dizia a outro, levantando os braços: - Que hei-de fazer! Diz que não casa! A gente pede-lhe, ameaça, e a resposta dela é que não! Nem à força! Dois turistas nórdicos olhavam espantados para um grupo de mulheres a ralhar. Com os telemóveis na mão pareciam hesitar se a cena valeria o retrato, sorrindo acanhados como se temessem as consequências Ao sair de casa não tinha intenção de passar pelo mercado. Ao fechar a porta virara à esquerda pela mesma razão com que poderia ter virado à direita, talvez inconscientemente assustada por ver o polícia ao fim da rua. Odiava todas as formas de violência, mas a violência estava em toda a parte, na gente apressada que corria pelo mercado, empurrando-se uns aos outros, desejosos de provocar uma reacção que os libertasse da raiva que mal continham, ou procurando maneira de descarregar sabe Deus que dores e aflições. Mudou para o lado onde havia menos gente, mas logo uma cigana a fez parar, agarrando-lhe o braço, mostrando qualquer coisa. Com um movimento brusco libertou-se da mulher, acelerou o passo, e olhando de vez em quando para trás ia quase a correr quando chegou ao café. - O costume? – perguntou o empregado, um rapaz que não conhecia. - Sim. E uma água sem gás, fresca. Estranhou que no estabelecimento estivesse tão pouca gente, pois àquela hora nos dias de mercado não havia uma mesa livre. - Ora aqui tem o cafezinho e a água. Solícito, o rapaz passava de novo o pano sobre a mesa antes de poisar a xícara, o copo, a garrafa, deu uma passo atrás, encarando-a como a certificar-se que estava tudo em ordem. Agradeceu com um gesto, mas a expressão do rosto era tão dolorosa e tensa que o empregado se deteve e a encarou preocupado: - A senhora sente-se mal? Acenou que não, baixando os olhos ao mesmo tempo que procurava na bolsa os cigarros e o isqueiro. Dum momento para o outro o café enchera-se de gente, e o ruído que noutra altura acharia incómodo, sentia-o agora como um bem-vindo entorpecimento à confusão de dores, decepções, ódios, raivas, memórias que lhe atropelavam o cérebro e a mantinham ali, prisioneira do momento, ainda incapaz de se entregar. Dera-lhe o Xanax por caridade. O triunfo da vingança sentiu-o no momento em que o corpo do Abel tremeu, aquietou-se, e ela afastou a almofada com que o sufocara.