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E se eu mostrasse o que guardo no peito? Se cedesse a um
daqueles acessos que, destravando a língua, me levariam a gritar o que com
tanto cuidado e energia refreio?
Conheço todas as razões e mais uma que justificam a
moderação, a cortesia, o amor do próximo, o amor à pele. Também sei que a paz
com a família, os vizinhos, conhecidos, amigos, lojistas, políticos e porteiros,
não se alcança nem mantém com o coração perto da boca. Mas que desmesurado esforço
isso necessita! E então o fingimento! Olha que sou franco. Não me passaria pela
cabeça esconder-te a verdade. Sou homem de palavra. Detesto mentiras. Fazer uma coisa dessas? Nunca!
E assim por diante, em representação permanente de ópera
bufa. Claro que também eu falseio, invento desculpas, uso estratagemas, sou
capaz de cumprimentos que a mim próprio deixam de boca aberta, elogios de que
me pergunto se o elogiado não vai desatar a rir de tão descarada sem-vergonha.
Tenho pouca, de facto nenhuma, esperança de melhoras, ou
que por milagre esteja a tempo de me tornar homem, cidadão, marido, pai, avô,
amigo e vizinho exemplar. Mas como ainda possuo um resto de vergonha, ultimamente vou
deixando de falar, e uma bem vinda surdez faz com que mal oiça o que me dizem.
De modo que continuo igual e de bem com o semelhante, acontece
apenas que calo mais e oiço menos.