sábado, setembro 6

O ideal

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Sério no modo, sóbrio no dizer, amigável, o jovem veio despedir-se dos vizinhos, anunciou que partia a lutar no Iraque pelo seu ideal, o de um mundo melhor, mais justo, menos corrupto. Embarcou ontem com a mulher e dois filhos.

Criei-me num mundo hostil e assustador: guerra na Etiópia, Guerra Civil de Espanha, Guerra Mundial, guerra na Indochina, na Coreia… Essas catástrofes longínquas tinham o efeito de redobrar em mim a ânsia de um ideal que terminasse com todas as guerras e a todos fosse dado viver num mundo de paz, dignidade e menos fome.
Mau grado reveses, dramas pessoais, tristezas, decepções e injustiças sofridas, mantive esse ideal já passado dos trinta.
Em 1964 conheci pela primeira vez o desafogo que a abastança permite, mas se recordo a data não é pelo conforto em que desde então passei a viver, sim pela tragédia de por esse tempo ter definitivamente  perdido os ideais que acalentara. O acaso da vida e das relações levara-me a conviver com uma casta de políticos, futuros políticos, jornalistas, literatos, negociantes, diplomatas de várias nações e raças que, realistas, diziam tê-los e vivê-los, mas não se perdiam em sonhos ou ideais. Falavam com língua dupla ou tripla, conforme o interesse, desdiziam o que antes solenemente tinham jurado, vendiam-se ao interesse que melhor pagasse. Vi-os depois em governos.
Dessa gente, a que não pertencia nem desejava pertencer, me desliguei sem pena, certo que continuaria a caminhar sozinho e que a jornada seria demorada e penosa.
De facto assim foi, ainda é, porque não tenho ideais nem sonhos, vivo num mundo em que vale a pena ser DJ, jogar futebol, seguir Justin Bieber, onde a nudez de uma ou outra mulher recebe mais atenção do que centenas de afogados no Mediterrâneo, um mundo onde a fome e as pragas se tornaram folclóricas e proveitosas.

Não estranho que haja idealistas que desejam a mudança e a quem o fanatismo cega. Mas que mundo é este em que, cegos também, aceitamos viver? Que esperança é a nossa? Que fizemos ao  ideal?