Talvez como compensação para um dia-a-dia em que são escassos os acontecimentos dignos de nota, quase todas as noites sonho. Mas os meus sonhos raramente são calmos e felizes, povoam-nos medos, perigos, abismos vorazes.
No sonho desloco-me para paragens onde nada se acomoda aos padrões da realidade: nem as gentes, nem os animais, as plantas, a paisagem ou as circunstâncias. E contudo, mau grado os medos e a estranheza, nesse mundo deformado sinto-me mais completamente eu, mais alerta e senhor de mim, do que quando ao acordar me vejo de retorno ao mundo real.
A minha vida costumo dividi-la em antes e depois da Holanda. Os primeiros vinte e seis anos do antes foram indubitavelmente os mais ricos, os da aprendizagem de mim mesmo e do mundo, os das viagens, das descobertas, do enriquecimento do espírito - mas também anos infelizes.
Os anos do depois foram sobretudo de sedimentação. Sentimentos, conhecimentos, ideias, sensações, tudo se foi lentamente acamando na formação do eu adulto.
E porque me sei mais feliz agora do que o fui na juventude, ou melhor, porque a felicidade veio quando eu já desistira da esperança dela, tenho por vezes a impressão de que, por um desleixo do destino, a minha existência se desenrola às avessas. O que ardentemente desejei quando tudo me parecia uma ascensão, foi-me negado. O que em seguida recebi, e não considero pouco, veio tarde demais para que o soubesse e pudesse gozar em pleno. Assim, embora de mãos cheias, quando olho para a vida que até agora tive sinto-me the wrong man in the right place, at the right time, with the wrong dreams.