A sala onde um dia de Dezembro passado nos encontrámos, tinha o ambiente metálico que caracteriza as salas de reunião do nosso tempo. E os cartazes alegres nas paredes davam-lhe uma garridice artificial, que contrastava com a luz fria de Inverno e a melancolia da nossa conversa. Ou melhor dizendo, do meu monólogo. Sobre as misérias do meu país. Sobre a fraude moral e social que são as estatísticas, quando pretendem contradizer com números a realidade das ruas e dos casebres. Sobre a sem-vergonha com que políticos e burocratas cuidam primeiro dos seus interesses, depois se divertem, gozam, e finalmente fingem tomar a peito os cuidados do país.
Ou porque o longo rosário de desgraças a fatigasse, porque a luz triste lhe causasse outros pensamentos, ou simplesmente porque, encontrando-nos numa emissora católica, tal curiosidade de certo modo tivesse cabimento, você de repente quis saber se eu acreditava em Deus.
E eu, tal um político surpreendido em momento crítico, dei-lhe, conscientemente, uma dessas respostas sofísticas que são o equivalente verbal da cortina de fumo - e fui adiante com a história do meu povo.
Acontece que quando alguém quer saber o que penso sobre a existência do Altíssimo, a minha reacção é muito semelhante à de quem sente ameaçada a sua privacidade. Não que a pergunta não fosse legítima. Bem ao contrário. Na sociedade descontraída em que vivemos todas as curiosidades são permitidas. É mesmo pelo jogo das confissões mútuas que hoje se mede o grau de simpatia ou apreço. A formalidade, a discrição, a reserva, raro são sinónimo de um comportamento apreciado, antes surgem como qualidades de um romantismo irremediavelmente esquecido e desprezível.
A confissão, o estendal de mazelas, aberrações, os vícios, isso é o que vale a pena. E quanto maior o detalhe, mais valiosa a confissão, mais intenso o contacto. Eu suponho até que, não possuindo vício que as distinga, certas almas simples não resistem ao pecadilho de se inventar deformidades e aflições. Para não correr o risco de que as julguem menos ou desinteressantes.
Nesse particular das confissões eu vivo francamente no passado: não as faço em público. Se, porque postos em letra de forma, alguns aparentes momentos do meu ser e do meu sentir dão uma impressão de confidência, isso não passa de recurso literário. A intimidade é para ser guardada e, excepcionalmente, oferecida em pequenas doses àqueles que a sabem receber e podem apreciar. O íntimo, a própria palavra o diz, é o que está nos recônditos da mente. Insistir em exteriorizá-lo, em torná-lo acessível a qualquer, toca o paradoxo. Além de ser signo de uma bem estranha ânsia.
Com estas considerações todas, quase ia esquecendo o que lhe queria dizer sobre a questão da existência do Todo Poderoso.
Pouco adianta que uns garantam que ele mora no céu e aguarde, mal humorado, o dia de nos julgar. Ou que outros afirmem, convictos, que tudo é poeira cósmica. A falar verdade, a partir do momento em que nos pomos perguntas para as quais não há resposta, caímos sem perdão sob a alçada dos dois poderes que mais eficientemente nos torturam: o medo e a dúvida.