domingo, setembro 13

Quando o coração pára

Se o tivesse lido no jornal ou ouvido a outra pessoa, na melhor das hipóteses o Cipriano acharia interessante, e depois, ao saber dalgum falecimento talvez lhe ocorresse lembrar o caso, mas não seria assunto para uma atenção por aí além. Contudo, ouvir aquilo da boca do Figueiredo deixara-o mesmo transtornado. Primeiro, por ser amigo de toda a vida e homem de grande honestidade, catedrático de Física com fama internacional, mas também pessoa que nunca, mas mesmo nunca, apanhariam a gracejar com coisas sérias ou, valendo-se da sua reputação, a querer impor certezas ou converter alguém às suas convicções.

Por isso foi mesmo um choque ouvi-lo contar o que até então só a família sabia, que dois anos atrás, num congresso em Filadélfia tinha caído sem sentidos, e já no hospital, os médicos em cuidados com a condição em que o viam, durante uns cinco minutos deram-no como clinicamente morto, o que foi confirmado pela enfermeira, que entrou em pânico ao ver que as curvas no monitor de súbito eram apenas a linha horizontal que assinalava a paragem do coração.

Salvaram-no, recuperou, confessa agora a estranheza desses minutos em que esteve morto, mas durante os quais teve consciência de um indescritível sentimento de paz e serenidade, e ao mesmo tempo uma forte aversão em retornar à vida donde momentos antes partira. Diz que nesse instante se sentiu a fazer um grande esforço para evitar a perda daquele estado de bem-aventurança.

A confidência ficou por ali, e se bem que gostasse de ter ouvido mais não insistiu, do que sente pena, mas também sabe que o espírito cientifico do seu amigo é avesso a especulações e nada adiantaria começar com perguntas. A ele é que aquilo não lhe sai da cabeça, gasta horas a magicar se terá sido uma ocasião reservada a uma única pessoa, como nos milagres, ou se em circunstâncias idênticas o mesmo se pode dar com qualquer um. Como se isso não bastasse também o preocupa o incómodo que há coisa de um mês o aflige, mas vai adiando a consulta, porque não saberia explicar o que sente e ainda com medo de que seja coisa ruim e lhe venham dizer que só tem meses de vida.

Com a Guilhermina não desabafa porque ela por um nada cai de cama, os dois melhores amigos já Deus os levou e por muita vontade que tenha não vai importunar o Figueiredo. Certo é que a curiosidade não pára de atenazá-lo. Se de facto não se morre, o que acontece então? Vai-se para algum lugar? Continuamos iguais? Temos sentimentos? Falamos? Andamos por aí invisíveis?