Ao voltarmos do funeral do Alberto ficámos à conversa,
mas não recordo quem disse que ele agora, lá no outro mundo, provavelmente já sabia
se a Terra é um planeta único ou se o espaço está cheio deles, maiores,
melhores, com seres mais avançados na inteligência e formas superiores de
civilização.
Não sei do que se falou depois, mas a certa altura
reparámos que contra o seu natural o Zé Freitas parecia alheado, macambúzio,
como se alguma coisa o preocupasse. Perguntámos e ele garantiu que não, estava
tudo bem, o que acontecia era que nos últimos tempos, talvez devido a tanto
barulho à volta do planeta, do gelo dos polos a derreter, da mudança do clima,
da poluição e sabe Deus que mais, sentia uma estranha fragilidade, um medo que
pouco a pouco ameaçava tornar-se uma obsessão constante.
Ouvimo-lo calados, não só porque talvez partilhássemos
o mesmo receio, mas também porque nos obrigava a um desagradável confronto com
a nossa indiferença. Continuou ele então, dizendo que não lhe interessava se a Terra
fora criação divina ou um acaso cósmico, menos ainda há quantos milénios
existia. Afligia-o, sim, a pequenez do seu tamanho.
Os que ali estávamos, mais ano menos ano todos da mesma
idade, tínhamos sido criados com uma visão bem outra do planeta, que nesse
tempo era colossal em tudo: no tamanho, nas distâncias, nos recursos, nas florestas,
nos picos do Himalaia, na riqueza dos oceanos. Mas num pronto, pouco mais de
meio século, foi quase total a reviravolta e assustam-nos agora que por nossa
culpa a Terra gira à beira do precipício.
Retornando ao professor que foi, e nós miúdos da
primária, o Zé Freitas desfiou números: o núcleo da Terra uma bola de ferro de mil
e tal quilómetros; à volta dessa bola uns dois mil quilómetros de ferro líquido,
por cima um manto de outros três mil de matéria vária, uma crosta fininha de vinte
a cinquenta quilómetros, e finalmente nós, os milhares de milhões que agora somos,
comendo, bebendo, trabalhando, fornicando, divertindo-nos com a alegre
inconsciência de que pisámos chão seguro, quando a fragilidade é mesmo de meter
medo.
As dimensões todos as conhecíamos, mas impressionavam-nos
menos do que o modo sombrio do nosso amigo e aquele seu tom de profeta bíblico:
- Uma crosta de vinte quilómetros é quê? É do Terreiro
do Paço a Oeiras, cinquenta até Cascais. Quando me ponho a magicar que tudo
assenta numa crosta de quase nada, perco o sono. E vocês podem gozar, que não
há-de ser para amanhã, mas isto está por um fio.