sábado, agosto 3

A quinta na Marofa


Era como ele gosta de dizer, ‘uma morte anunciada’, e notava-se em tudo: nas falências, nos prédios abandonados, até no modo das pessoas. Gastavam cada vez menos, havia dias sem vender uma blusa, um par de calças; às tantas, embora lhe custasse e fossem sem conta as noites em branco, viu-se obrigado a despedir a Deolinda, que trabalhava com ele há onze anos.
Uma tarde, falando com o Tavares da Caixa, compreendeu que só havia uma solução: fechar a loja enquanto era tempo, pôr o prédio à venda e convencer a Amélia a mudarem para a quintinha que tinha herdado da tia Albertina. Ficava para os lados da Marofa, longe de tudo, razão de só lá passarem duas ou três semanas em Agosto, antes de irem para o Algarve. Por muito que lhe doesse não havia outro remédio, mas se por acaso a crise um dia acabasse e as coisas mudassem, então se veria.
Claro que ela ia resmungar, ser contra, queixar-se que aquilo era um deserto, quase o mesmo de quem se quer enterrar vivo, mas para isso já estava preparado e tentaria ser razoável, convencê-la com bons modos, lembrar-lhe que era  exagero falar de deserto, pois na aldeia ainda se aguentavam dois cafés. Também não precisava de lhe lembrar que de lá até à Guarda era um salto, Salamanca hora e meia no máximo, e se quisessem ir ao Porto ou a Lisboa pouco mais tempo levava. De modo que…
Se bem me lembro isto foi conversa que tínhamos tido em meados ou fins de Abril. Depois, como durante um tempo não nos vimos, deu-me ideia que se calhar não saía da quinta, por isso foi surpresa dar com ele na garagem do Cerqueira.
Fomos beber um copo. Tinha engordado, continuava por lá, e como tivera o bom senso de entrar no negócio do azeite, a vida corria-lhe de feição. Sim, ainda viviam na Marofa, mas em Abril mudavam para o Porto.
- Vou fazer sessenta, nunca me senti tão bem.
Olhou-me, talvez à espera de comentário, mas receando um passo em falso respondi com as banalidades da boa aparência, ninguém lhe daria a idade.
E de súbito, como se eu pudesse ler-lhe os pensamentos, resmungou que era esse o problema.
- É mulher que vê a televisão, segue as telenovelas. E tem as revistas, fala com as amigas! Isto já não é o antigamente, que diabo!
Dando conta que eu não estava a compreender, segredou o que a mulher na cama lhe recusa.
- Não pode ser, pois não? Então para que é que a gente se casa?
Cada um tem as suas aberrações e desejos, mas naquela idade, com aquele corpo, custa imaginar a Dona Amélia com correntes e algemas a fazer o que ele pede.