sexta-feira, agosto 23

Bilhetes (74)


Nasci, criei-me e vivi num mundo pobre, de fomes, de guerras e grandes diferenças, mas também de esperança, de sonhos e avanços espectaculares. Até há uns dez anos sentia-me bem nele, ainda sonhava, mantinha a ilusão de que à minha maneira e nos limites  do que era capaz, contribuíra para justificar o ter vindo ao mundo: criei filhos, escrevi livros, plantei árvores.
Agora, todavia, a poucos meses de fazer noventa anos e na certeza de que a morte não demorará, olho com melancolia para o passado, porque este presente parece querer negar tudo o que foi sonho, destruir o que pareceu valioso, substituir a precisão de liberdade por todo um sistema arbitrário e refinado de censuras, ukases, proibições, imposições, mandamentos, justificando-se como todas as ditaduras e todas as tiranias com o argumento do bem comum, da felicidade universal, e a conhecida promessa de um futuro com o sol a brilhar para todos.
E assim o verde, que era a cor da alegria e da esperança, se mudou no vermelho do passado: a cor da repressão, do extermínio dos opositores, do Gulag, dos campos de concentração. É  agora a bandeira da sociedade que se anuncia: dividida em bons e maus, os que seguem e os que se opõem, todos espiados e controlados por um governo que tudo pode, em tudo manda, tudo determina.
De modo que sei que não vou morrer em paz, porque mesmo que haja uma vida eterna levarei comigo a pena de que por muito tempo, quem sabe se para sempre, em vez de sonhos e esperanças, o mundo que deixo será um de medos e imposições.