sexta-feira, maio 14

O grande Brasil

A leitura que fiz aqui trouxe-me não sei quantas recordações do grande Brasil. Entre elas a que segue, e que um dia incluí num conto.


Além dos confortos óbvios que oferece, a riqueza dos muito ricos, sobretudo a daqueles que a possuem há gerações, não somente lhes dá uma visão particular do mundo, mas concorre por vezes para alterar de maneira curiosa o significado das palavras que usam.

Numa outra vida que paradoxalmente me parece recente e remota, estava eu em São Paulo numa festa em casa de amigos, quando um homem grisalho e de meia idade me começou a fazer o elogio da sua fazenda.

A conversa dos outros tinha mais interesse, mas apanhado pela dupla tenaz das boas maneiras e do respeito devido aos anos do senhor, fiquei a ouvi-lo com impaciência e um sorriso de circunstância. De vez em quando acenava o meu assentimento, e isso, juntamente com a fixidez dos meus olhos presos nos seus, por certo lhe parecia uma forma suficiente de diálogo, pois há quase uma hora me descrevia ele a beleza e vastidão da sua propriedade.

Coisa oferecida pelo imperador D. Pedro a um seu avoengo - com um sorriso sublinhou o arcaísmo - em reconhecimento de grandes serviços prestados por esse maior - novo sorriso - na luta pela independência brasileira. Mais vasta que algumas provínc­ias de Portugal. Dezenas e dezenas e dezenas de quilóme­tros. Ele próprio, segundo confessou, possuía um conhecimento imper­feito do tamanho das provínci­as do meu país, mas amigos seus tinham garantido que assim era. Embora outros pusessem o facto em dúvida. "Como português e homem de conhecimentos" eu parecia-lhe a pessoa indicada para com os próprios olhos ir "medir aquele mundo" e oferecer em seguida uma opinião irrefutável sobre se sim ou não a sua fazenda se poderia, por exemplo, comparar a Trás-os-Montes ou ao Minho.

Pareceu-me tal desaforo querer reduzir a minha querida província transmontana ao tamanho duma fazenda brasileira que não hesitei no exagero. Tirante o Alentejo, uma antipática sucessão de estepes, disse-lhe eu, Trás-os-Montes era a mais vasta e imponente província portuguesa. Não se estendia por dezenas, mas centenas de quilómetros. Tinha grandes serras, como o Marão. Nela passava o Douro, soberano entre os rios da Península.

Ele esboçou um gesto de desculpa, confessou-se surpreendido com a vivacidade da minha reacção e sinceramente contrafeito de que fosse tão escasso o seu conhecimento do "nosso Portugal, pátria comum". Talvez a sua fazenda se não pudesse igualar "a essa esplendorosa província", mas a falar verdade não havia nela um, mas dois grandes rios, e uma serra tão alta e tão cheia de onças que ninguém tinha ainda ousado desbravá-la. Foi a minha vez de ceder. O Minho, região de terras amenas e distâncias modestas, talvez se pudesse comparar a uma razoável fazenda.

- Lhe chamam o jardim de Portugal, não é?

Confirmei e ele teve um sorriso de desapreço, como se lhe desagradasse a ideia de que alguém pudesse associar o seu território com coisa tão pequena.

- Porque você não dá um pulo até lá, para ver? Fica uns dias.

Desculpei-me com o muito trabalho do jornal, mas logo ele sugeriu ir falar ao director, que noutro grupo discutia política, e exigir dele, seu amigo íntimo, que me fosse dada uma folga. Tive dificuldade em convencê-lo a que o não fizesse e por fim cedeu aos meus argumentos, mas o alívio de não ter de ir brincar aos agrimensores foi de pouca dura.

- Você trabalha no domingo?

Respondi que não, gracejando que a vida de jornalista, sem ser um mar de rosas, oferecia pelo menos a vantagem de se poder guardar o dia do Senhor.

- Então está resolvido - decidiu ele, contente. - Domingo você almoça lá na fazenda.

Sorri daquela ingenuidade e, a oferecer-me uma importância que não tinha, puxei o fumo ao cigarro, perguntei se ele se dava conta que, mesmo de automóvel, eu levaria dois dias a fazer os seiscentos e pico quilómetros que separavam São Paulo do seu domínio. Mais os dois dias da volta. Por muito agradável que fosse o convite e honrosa a companhia, para um almoço parecia-me um bocado excessivo.

Ele encarou-me alheado, como se não tivesse ouvido, e em vez de reagir às minhas palavras chamou a esposa:

- Gabriela, chega aqui. Domingo o José vai na fazenda almoçar com a gente.

- Mas é impossível - tentei eu explicar. - Quatro dias...

A mulher encarou-me com um sorriso vazio e um desinteresse total pela minha presença e as palavras do marido, mas repetindo como um autómato: "Que óptimo! Que óptimo!"

- Então, Gabriela, você trata com o pessoal - ordenou ele. - E avisa Manuel e Georgina. José vai verificar para a gente se a fazenda realmente é tão grande como uma província lá do Portugal.

A mulher beijou-o na face com um entusiasmo de comédia e virou-nos as costas.

Irritado, procurei chamá-lo à realidade: - Oiça, mesmo com a melhor vontade do mundo e licença do director eu não posso gastar quatro dias...

- Que besteira é essa de quatro dias que você continua falando? Duas horas, rapaz! Eu mando o avião te pegar e ele te deixa mesmo à porta. Tem pista.


Assim aprendi que, usadas por um mortal de bolsa modesta ou um multimilionário, as mesmas simples palavras com que se convida alguém para almoçar, encerram mais que a diferença entre dois mundos.


(in OMilhão – Recordações e Outras Fantasias)