sábado, agosto 17

Isto está por um fio


Ao voltarmos do funeral do Alberto ficámos à conversa, mas não recordo quem disse que ele agora, lá no outro mundo, provavelmente já sabia se a Terra é um planeta único ou se o espaço está cheio deles, maiores, melhores, com seres mais avançados na inteligência e formas superiores de civilização.
Não sei do que se falou depois, mas a certa altura reparámos que contra o seu natural o Zé Freitas parecia alheado, macambúzio, como se alguma coisa o preocupasse. Perguntámos e ele garantiu que não, estava tudo bem, o que acontecia era que nos últimos tempos, talvez devido a tanto barulho à volta do planeta, do gelo dos polos a derreter, da mudança do clima, da poluição e sabe Deus que mais, sentia uma estranha fragilidade, um medo que pouco a pouco ameaçava tornar-se uma obsessão constante.
Ouvimo-lo calados, não só porque talvez partilhássemos o mesmo receio, mas também porque nos obrigava a um desagradável confronto com a nossa indiferença. Continuou ele então,  dizendo que não lhe interessava se a Terra fora criação divina ou um acaso cósmico, menos ainda há quantos milénios existia. Afligia-o, sim, a pequenez do seu tamanho.
Os que ali estávamos, mais ano menos ano todos da mesma idade, tínhamos sido criados com uma visão bem outra do planeta, que nesse tempo era colossal em tudo: no tamanho, nas distâncias, nos recursos, nas florestas, nos picos do Himalaia, na riqueza dos oceanos. Mas num pronto, pouco mais de meio século, foi quase total a reviravolta e assustam-nos agora que por nossa culpa a Terra gira à beira do precipício.
Retornando ao professor que foi, e nós miúdos da primária, o Zé Freitas desfiou números: o núcleo da Terra uma bola de ferro de mil e tal quilómetros; à volta dessa bola uns dois mil quilómetros de ferro líquido, por cima um manto de outros três mil de matéria vária, uma crosta fininha de vinte a cinquenta quilómetros, e finalmente nós, os milhares de milhões que agora somos, comendo, bebendo, trabalhando, fornicando, divertindo-nos com a alegre inconsciência de que pisámos chão seguro, quando a fragilidade é mesmo de meter medo.
As dimensões todos as conhecíamos, mas impressionavam-nos menos do que o modo sombrio do nosso amigo e aquele seu tom de profeta bíblico:
- Uma crosta de vinte quilómetros é quê? É do Terreiro do Paço a Oeiras, cinquenta até Cascais. Quando me ponho a magicar que tudo assenta numa crosta de quase nada, perco o sono. E vocês podem gozar, que não há-de ser para amanhã, mas isto está por um fio.