quarta-feira, maio 4

Leituras

Caro B.S. F.,

Não será todos os dias, mas sei que, com atenção, lês Wittgenstein, São Tomás, Confúcio ou Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh ibn Sīnā, que também conhecemos por Avicena. Por isso te invejo, pois o que aprendi mal dá para seguir Platão ou John Locke, o pensador do verdadeiro ideal democrático, e que tanto contribuiu para impedir a criação de uma aristocracia na sociedade americana.

Outros, menos favorecidos, encontram benefício na leitura de policiais e histórias de amor, na Science Fiction de Asimov, no horror de Stephen King, nas produções da Chicklit, nos imbróglios de José Rodrigues dos Santos, e até relendo As Pupilas do Senhor Reitor ou soletrando o Borda d'Água.

Grande coisa, pois, é a leitura, mas também de variadas consequências, implicando por vezes nas relações, ou emitindo complicados sinais de antipatia, de descrença e aborrecimento. Acontece ao acaso das conversas, por vezes a encher um vazio ou mudando para assunto menos delicado, mas bom seria se evitássemos informar acerca das preferências e entusiasmos sobre o que lemos.

Sabendo-te assim íntimo na leitura de espíritos superiores, tendo-te tantas vezes ouvido citar Descartes, Aristóteles, Freud e outros génios, com a segurança que só a competência empresta, imagina que, pedindo mais um café, me sussurras quanto nos últimas dias te tem absorvido a leitura de, por exemplo, um romance de Óttar M. Norðfjörð.

Como sou razoavelmente capaz de ocultar o que sinto não arregalarei os olhos, nada nas minhas feições trairá espanto ou surpresa. Mas no fundo vou-me perguntar que sonhos escondes, que fraquezas e temores desejas que eu descubra através dessa retorcida prosa, onde é questão de nevoeiros e entranhas furadas, garrotes, quedas mortais nas brechas do Tungnafellsjökull, dentes cravados até ao sangue em gargantas alvas.

Essa é a tragédia. Não quero descobrir quem realmente és, nem sequer desejo que, pela retorcida indicação de uma leitura, me acenes um vício teu, um medo, um recalque. Disso te peço que dês conta: esconde as tuas leituras, fala-me apenas daquelas em que não corres o risco de te mostrar na fragilidade da nudez.