sexta-feira, maio 6

Esmolas

 

Tinham-se habituado a aceitar esmolas um do outro. Há quatro ou cinco anos, pensava ela, às vezes contando pelos dedos, hesitante, a perguntar-se se deveria acrescentar um, tirar um.

Desde a primeira noite, dizia-se ele. O choque do momento presente como uma cicatriz. Não tinha sido a revelação de que o corpo nu correspondia mal à imagem que se fizera, mas algo como um odor desagradável, um modo que lhe desconhecia, banal e grosseiro, a querer tentá-lo com seduções toscas, cópia sabe Deus de que mau filme.

Cumpriam o ritual, faziam os gestos, no momento certo diziam-se as frases, remavam o barco  em lago sereno. As gémeas nasceram, depois o rapaz, e acharam que bastava.

Podia ter sido ele, porque a sua decepção era grande, talvez a maior. Sentia-se espoliado de sonhos, esperanças, de vivências e aventuras, a imagem que lhe vinha era a de uma névoa em que lentamente sufocava.

Mas foi ela a primeira a trair. Um acaso, encontrando sem se dar conta que procurava, o estranho a revelar-lhe a pobreza em que vivia, a esmola que se habituara a receber, aquele "Meu amor! Meu amor!", gritado no mesmo tom, no mesmo instante.

O homem possuiu-a com certezas de macho, dando o que ela esperava, enchendo o vazio a que se habituara e lhe doía, despedindo-se sem promessas.

É um automatismo, aquele contar pelos dedos. Serão já sete meses? Oito?

Vêm-se às sextas, ao fim da tarde. Há-de-lhe perguntar.