sábado, fevereiro 29

O filme do Travolta


Muitas vezes o melhor seria não ter memória, ganhar o dom de à vontade do freguês passar a esponja sobre as recordações que magoam e então, com a lousa limpa ou carregando no Delete fingir que se pode recomeçar, sem ontens só amanhãs. O mal é que a memória até aflige os que julgam tê-la perdido e carrasco refinado na tortura traz ao de cima as lembranças que mais doem.
No café, sentado à minha frente, esquecido de beber a cerveja, o Gonçalo esfrega os olhos e evita encarar-me, num sussurro envergonhado pede que lhe conte se de verdade foi assim e eu sabia, queixoso de nunca ter desconfiado, ninguém o avisar, a própria mãe tão enfeitiçada que nesse tempo só tinha olhos para a nora, talvez porque a rapariga fosse o que ela não tinha podido ser.
Incomoda-me aquela insistência do Gonçalo, o seu modo patético, que raio adianta mexer no que já lá vai há anos e ambos faleceram? Com uma bruteza que me desconheço ponho fim à conversa e despeço-me, mas a recordação não me larga.
Numa e noutra altura pergunto-me porque nasci incapaz de me entusiasmar pela alegria de festas e arraiais, qual será a razão que me põe avesso e ao mesmo tempo entristece, por saber  que finjo mal o entusiasmo, estou ali de corpo presente mas a alma bem longe.
Curioso do que teria levado tanta gente para aquele canto do arraial tinha parado a vê-los e disse comigo que era mau agouro. Bonita, delgadinha, radiante como uma rapariga pode ser aos vinte, Catarina fazia um lindo par com o moço que a prendia nos braços, ambos tão apaixonados no ritmo que os outros tinham deixado de dançar e olhavam espantados. O espectáculo valia a pena e houve bis, mais bis, alguém disse que um par daqueles e uma banda assim parecia o filme do Travolta.
Pesadão e mole, na sua ingenuidade de marido apaixonado o Gonçalo não tinha olhos para o langor com que a mulher ora se abandonava ao outro, ora o incendiava com requebros, peito contra peito, os lábios quase a tocar-se, os olhos num ardor, as pernas entrelaçadas, os corpos em labareda.
Fui dali com o sentimento de ter assistido a algo mais do que um par entusiasmado na dança, mas pouco interessado na vida alheia e na minha contratempos de sobra, quando me vieram dizer que a Catarina tinha fugido demorei a dar conta que era a do arraial e mulher do meu afilhado. Agora, porém, o que me doía era a memória da dureza com que o tinha tratado no café e a incapacidade de lhe dizer a verdadeira causa da minha rispidez: a de que há mágoas que não se confessam.