Hoje é uma recordação
surrealista e cómica, mas nesse momento foi experiência
traumática o ver-me à entrada do salão nobre da Câmara, num grupo
de rapazes nus e a tiritar, esperando que lá do fundo nos
chamassem. Sobre um estrado, sentados atrás da mesa
presidencial, dois médicos de bata branca ladeavam um coronel
façanhudo, cuja farda reluzia de distintivos e condecorações.
O coronel olhava uma folha,
resmungava qualquer coisa a um sargento que, com outro
papel na mão, se achava a meio caminho entre nós e a mesa. O
sargento gritava então os nomes num estentor de parada.
Com o choque de me ver nu e
desamparado, ao entrar mal reparei na monumentalidade
do salão, buscando conforto no pensamento de que por sermos
tantos, demoraria a chegar a minha vez de tomar parte
naquele estranho desfile de modelos.
Preocupado em encontrar uma pose
natural que me permitisse dissimular a «ferramenta» sem
ter de pôr as mãos a fazer de folha de figueira,
desatendi do que se passava lá ao fundo, até que de súbito me vi à
frente, mais desprotegido que antes.
O que me precedia, um magricelas
alto e desengonçado, caminhava lentamente sobre a
passadeira vermelha, dando a impressão de cambalear.
– Ó menina! – berrou o coronel.
– Despache-se! Não estamos aqui a fazer sala! Levante a
cabeça, sacuda esses braços!
O rapaz parou diante da mesa,
encolhido, intimidado. Via-se-lhe tremelicar a pele
flácida das nádegas, e certamente lhe perguntavam qualquer coisa,
mas como era longe não se
distinguia mais que o murmurar
das vozes.
Um dos médicos aproximou-se
dele, levantou-lhe o queixo, passou-lhe a mão pelas costas,
batucou, auscultou, examinou-lhe os joelhos, fez-lhe levantar
os pés. Inesperadamente ouviu-se um
grito medonho de dor, e enquanto o médico voltava ao
seu lugar, o rapaz dobrado em dois saía pela porta do
fundo.
– Aquilo foi o aperto dos
colhões – disse alguém atrás de mim, ao mesmo tempo que o
sargento gritava o meu nome. Indiferente ao forte desejo que
eu sentia de permanecer imóvel ou desfazer-me em fumo, o
meu corpo pôs-se a caminho da mesa em passo rápido, cabeça
erguida, sacudindo energicamente os braços.
O coronel perguntou-me o nome, a
data de nascimento, a filiação, a morada, e ia
conferindo as minhas respostas com o papel. Ao dizer «Está certo» o
mesmo médico levantou-se e veio direito a mim. Com um
objecto de metal que me meteu entre os dentes fez-me baixar a
língua, depois levantou-me o queixo, examinou-me as
pálpebras, apertou-me os bíceps, batucou- me as costas, raspou-me a sola
dos pés com um instrumento agudo, quis saber se eu sofria
de doenças. Claro que sofria e ensaiara o bastante
para ter a resposta pronta: – Vejo muito mal e sofro de
dores no peito e na espinha.
Ele resmungou para a mesa um
latim qualquer, entortou-me o pescoço, socou-me as
omoplatas, fez-me curvar, endireitar, de novo para um
lado, de novo para o outro, e agachando-se à minha frente agarrou-me
inesperadamente os testículos, machucando-os com tal bruteza
que de um golpe se me foi o ar dos pulmões. Mas não
gritei.
(Excerpto de O Hospital
Militar in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal,2011).