Quem vive na cidade tem por
vezes curiosas ideias sobre os meios pequenos, imagina nas vilas e aldeias uma
grande intimidade, aquelas conversas com tempo de sobra, um vaivém de visitas e
portas abertas. Talvez noutras terras assim seja, mas cá na vila mesmo entre
parentes e amigos nota-se um certo retraimento, se se lhes bate à porta com um
recado o convite para entrar as mais das vezes é pró-forma, ou então fingem pressas,
atabalhoando desculpas.
Na semana passada a meio da
tarde fui ao Correio para levantar um registo, mas pelos jeitos era o dia dos
vales e ao ver aquela fila desisti, fiquei no passeio a hesitar se ia até ao
café ou voltava para casa. Foi então que vi o Alfredo acenar-me da porta da
farmácia para que lá fosse, e atravessei a rua perguntando-me se teria havido outra
vez engano com a receita.
Felizmente não havia, o Valentim
é que se tinha esquecido dos comprimidos e não atendia o telefone, ora como eu
morava perto…
Por alcunha “O Marmeleiro”, o
Valentim abriu a porta, a cara de incomodado logo virada para o cordial, e
contra o costume fizesse o favor de entrar, agarrando-me pelo braço não fosse
eu desistir.
Agradeceu, puxou uma cadeira
para que me sentasse, e já agora que estava ali de certeza não ia dizer não a
um cafezinho que ele fazia como antigamente numa cafeteira e era especial,
mandava-lho o irmão que vivia em Amboim.
Falámos disto e daquilo, dos
nossos achaques, das “pírulas” – o seu sorriso a marcar a ironia – que tomava
para ter algum descanso, pois embora só faltassem três meses para cumprir
cinquenta anos que voltara de Angola, as memórias da guerra não lhe davam
trégua nem paz, muitas noites era como se ainda lá estivesse, sentia os mesmos
medos, ouvia os gritos, os estrondos, acordava do pesadelo encharcado em suor.
- Uma noite da semana passada comecei
aos gritos, julgava que ia atirar uma granada e afinal tinha adormecido com o
telemóvel na mão! Enfim…
Deixou de me encarar, como se
hesitasse no que ia dizer ou temesse a minha reacção, a sua voz pouco mais do
que um sussurro:
- Só quem esteve metido naquilo é que sabe, é que pode
dizer. Tenho horas em que se fizesse o que me passa pela cabeça nem sei o que
aconteceria. Vou tomando as “pírulas” às duas e três, o doutor diz que é um
perigo, mas estou-me nas tintas, se morrer morri. Agora como as coisas andam
palavra que não sei. Um destes dias vêm eles por aí acima, tomam conta disto
tudo. Sabe que já não se pode dizer que os gajos são pretos? Então que são?