"Recordação antiga, o avô na força da idade, ele exausto por meses de pesquisas inúteis em Bîr Moghreïn, sentados no mesmo canto do terraço, favorito de ambos.
- Havias de ver. Uns dois meses depois da revolução aparecem os ganhões e uns comunistas de Odemira. Um mar de gente a gritar “Fora! Fora! A terra a quem a trabalha! Morte ao capital!” Enfim, o folclore. Mas que metia medo, lá isso metia. Todos de punho erguido, “ O povo, unido, jamais será vencido! O povo, unido, jamais será vencido!”
Eu nunca tinha sabido o que era cobardia, mas vi o caso mal parado, e digo-te, com aquela malta à minha frente, pouco faltou pra que borrasse as calças.
Às tantas aparece o Samuel. A fumar. Na calma. De espingarda na mão, como quem vai à caça. De armas nunca entendi, depois é que ele me contou que aquilo era uma Kalashnikov que tinha apanhado na Guiné a um guerrilheiro.
Põe-se ao meu lado e diz-me que volte para casa. Respondo-lhe que não. Como o senhor conde quiser, mas por favor não se meta. Deixe comigo.
Vejo-o atirar o cigarro e parar ao pé dos gajos. Vocês, meus amigos, vão de marcha atrás. Um berreiro dos diabos. Entre homens e mulheres seriam uns quarenta ou cinquenta, elas mais assanhadas do que eles. Põem-se a andar, diz ele, isto aqui tem dono. Agora é o povo quem manda! reponta um grandão. Ai é? diz o Samuel. Aponta a arma para a copa das árvores e atira uma rajada. Havias de ver. Pareciam coelhos!
Mais tarde ainda apareceram com delegações, com comités, a dizer que viria a GNR, que os comandos de Beja iam ocupar isto como no Alentejo.
O Samuel deixava-os falar, mudava a metralhadora ou lá o que é dum braço para o outro, como quem está a perder a paciência, e eles nunca passaram das ameaças. Por fim as coisas foram acalmando, mas uns três anos quase que aguentou ele sozinho a lavoura. Ele e o Gaiolas, aquele maluquinho que era meu afilhado e depois morreu debaixo do comboio.
- E os ciganos.
- Também. Mas esses não se metiam em políticas e continuaram a fazer a vindima.
Os vultos caminham lentos, tiram-no do devaneio. As “Manas”, as gémeas que "pertencem" à casa desde pequeninas, sempre juntas, vestidas de igual com o vestido preto que se lhes tornou uniforme. Iguais também no modo carinhoso, na malícia dos olhos de azeviche, no andar curvado.
De idade devem ir nos oitenta ou mais, respondem elas a quem pergunta. Mas certeza nenhuma, porque nunca lhes deram “papéis.” Tinham perguntado ao senhor conde velho se sabia, e ele disse que não, mas não se importassem com os anos, haveriam de chegar aos cento e vinte. E desatara a rir, que más como eram Nosso Senhor nem no Inferno as queria, quanto mais no Céu.
Frágeis, diminutas, uma com o bloco, a outra com o envelope, terna e triste aquela servidão entranhada nelas, feita segunda natureza."
in Mentiras & Diamantes - Quetzal, 2013