São horas em que se atira a culpa ao Destino, que além de ter costas largas é mudo, e daí incapaz de desenrolar argumentos a favor ou contra.
Razões não se lembra de ter tido, foi como se o chamassem, mas ao acender a luz na arrumação olhou em volta, distraído do que o levara ali, ou por que motivo pegara na caixa.
Tinha-a agora diante de si no tampo da secretária, mas sem a abrir, perguntando-se se valeria a pena fazê-lo. Caixa de sapatos italianos, bizarria a que cedera uma única vez, não por vontade própria mas... De súbito a memória dispara, vê-se a sair da loja de mãos dadas com a Anita, que não somente lhe impusera a compra, como exigira que fossem daquele modelo bicudo então na moda, e ele detestava.
Nessa altura, porém, era ainda o amante domesticado e manso, tão vaidoso da conquista que corria riscos de adolescente, subindo com ela o Chiado, levando-a a almoçar a restaurantes onde era mais que provável que encontrasse lá um ou outro conhecido.
Quis a má sorte, ou a boa, questão de ponto de vista, que quem dessa vez encontrou não foi conhecido ou amigo, mas a própria sogra, Dona Catarina em carne e osso, amesendada ao fundo da sala, de mãos dadas com um jovem bonitão que, para usar o vocabulário desse tempo remoto, logo se via que era dos tais.
Fez-lhe um adeusinho, a sogra retribuiu, e puxando a Anita sem lhe explicar a razão, disse que iam comer a outro sítio. Não foram, porque ela queria explicações e recusou, como também não se voltariam a ver.
Nessa noite, depois do jantar, Dona Catarina acenou-lhe que a seguisse para o terraço e levasse os cigarros.
- Nem pio, estás a ouvir?
Acenou que sim, deu-lhe lume.
Uma caixa, um par de sapatos. O tiro de partida para a sua escravidão