domingo, setembro 29

Terras e rocas

 

“Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”, clássico da sabedoria popular, tem aceitação num tão grande número de interpretações que, ao fim e ao cabo, fica reduzida ao que não deveria ser: a frase que preenche um vazio na conversa, ou a expressão de uma suposta finura do pensamento.

Desta vez calhou-me ouvi-la inesperadamente numa esplanada, aqui em Amesterdão, dita num grupo de cavalheiros de meia-idade que, ignorantes da presença de um compatriota, discutiam alto e bom som as idiossincrasias do país, um deles afirmando ironicamente que, antes de lhes ensinarem a ler e escrever, os pais holandeses ensinam os bébés a poupar.

Não me dei por achado, mas se fosse do grupo concordaria, pois em muitos casos assim será, é mais que sabido serem os holandeses campiões fanáticos da poupança.

Nesse momento, porém, mistérios do cérebro, saltou-me o pensamento para um texto da História de Portugal, de Oliveira Martins que dias antes estivera a reler, e vi-me a involuntariamente abanar a cabeça, recordando o retrato que ele faz do mãos-largas que foi o nosso D. João V. Esse  oferecia às amantes o seu próprio peso em ouro, e quando encomendou os sinos para o convento de Mafra, ao ser-lhe dito que os fundidores desconfiavam que não tivesse dinheiro bastante para  pagar o milhão de cruzados do trabalho, o Magnânimo, picado na sua extrema vaidade, não só mandou duplicar a encomenda, como ainda pagou adiantado.

E porque uma coisa puxa outra, entretido que estava com esse caso distante, vi-me a recordar os volframistas da minha adolescência que, ricos do dia para a noite, pagavam no café com uma nota de cem os cinco escudos da cerveja, e quando o empregado voltava com o troco diziam-lhe, também eles magnânimos, “Deixa ficar”.