domingo, setembro 8

As rasteiras da memória

 

São variadas e de sobra as rasteiras da memória. Vivências que se queriam e julgavam esquecidas, sepultadas, ou conscientemente empurrado para o mais longínquo dos fundos, de súbito e sem motivo que se lhes adivinhe temo-las defronte. Vivas, presentes, eliminando o tempo. Carrascos sem dimensão, vulto ou aparência, e por isso temerosos, impossíveis de aniquilar ou deles fugir.

Sobram os queixosos de que a memória inesperadamente lhes falta, ou se mostra menos pronta a servi-los, mas esses põem de lado os tormentos a que escapam, menorizam o benefício.

De tormentos assim, e quase permanentes, pode falar o Agostinho, pois vai em dois anos que a Carolina faleceu, e ao contrário da esperança de que se sentiria aliviado, poderia finalmente viver à sua maneira, sente-se dia e noite algemado à memória da defunta que, sádica por temperamento e refinada no processo, tudo deixou preparado para que a sua presença continue a sentir-se.

Há gavetas que desde então não se arrisca a abrir, lugares que deixou de frequentar, evita certos gestos que ela lhe censurava, os amigos já notaram que por vezes deixa uma frase a meio e parece ausente, como se de súbito perdesse o fio à meada.

Ao psiquiatra já foi, mas saiu da consulta a duvidar se o fulano tinha mesmo estudado, ou teria pago o canudo com dinheiro vivo, pois o conselho de que tentasse pensar menos na defunta um qualquer o diria, repetiam-lho os amigos.

Dias atrás abriu-se com o Antero e esse, o mais íntimo, foi duro:

- Casares outra vez? Para sentires alívio? Estás pior da cabeça. Será mesmo verdade o que dizemos uns aos outros? Que gostas de apanhar e a Carolina te falta?