terça-feira, julho 27

Sem futuro

 

Na minha idade não há futuro. Se me tornar excepção poderei viver ainda dez e chegar aos noventa ou, alcançando o século, tornar-me notícia de primeira página no boletim da paróquia.

Por isso conto apenas com o dia de hoje. Sem pessimismo nem optimismo, temperando os assomos, repelindo da memória as paixões que me mostraram como é o Inferno, repelindo também, mas docemente, as que abriram a frincha por onde apercebi o Paraíso.

Na medida em que o posso vou temperando os sentimentos, controlo as febres, esforço-me por evitar os picos de raiva e as funduras da decepção. Esforço-me, mas raro consigo, porque mesmo sem futuro tudo me obriga a ter consciência do mundo, a sofrer e a alegrar-me com ele. Ora de pé, sorrindo, logo depois sombrio, aos rebolões, temendo a queda.

Vivi em pleno, mas por mais de uma vez, testemunhando a tragédia alheia, fiz vénia, e disse também: "There, but for the grace of God, go I." Infelizmente, nem o que vivi ou aprendi me serve agora de amparo, pois já não tenho futuro onde  empregar o que ganhei de experiência, tão-pouco me abençoou a sabedoria. E assim vou indo, de longe a longe olhando para trás, surpreso cada vez que o dia nasce.