quarta-feira, julho 7

Confissões

Muitos anos passados veio o rapaz duma pequena cidade das Beiras para aqui estudar música sacra. Perguntei-lhe se era bolseiro da Fundação X, ele surpreso de que eu soubesse  da existência duma instituição tão discreta.

Conhecia ele a história da fundação? Por certo que sim, mas respondeu pela negativa, e então contei-lha eu.

Em meados do século XIX na cidade em questão um boticário de poucos meios casou com uma solteirona riquíssima, que passados uns anos, depois de uma curta doença entregou a alma ao Criador.

Tendo a mulher morrido sem testamento, o boticário deu-se conta de que da fortuna que gostaria de herdar por inteiro, metade iria ser dividida pelos sobrinhos da falecida, o que o levou a tomar uma decisão ousada e fulminante. Chamou a cozinheira, dois criados, explicou-lhes o plano e jurou que não se haviam de arrepender da ajuda que precisava deles.

O cadáver da esposa foi escondido, a cozinheira ocupou na cama o lugar da morta, o notário veio, falou com as testemunhas, e dadas as circunstâncias apressou-se a escrever as "últimas vontades" da moribunda que, em voz tremida, afirmava legar ao marido a totalidade dos seus bens.

Ainda conseguiu assinar antes de desfalecer e o documento foi validado pelo testemunho dos presentes.

Fez-se o enterro, passaram anos, mas incapaz de suportar os rebates da consciência um dos criados acabou por enlouquecer, e corria pelas ruas aos gritos de "Confissão! Confissão!"

O pároco, condoído, levou-o para a igreja, ouviu o relato, deu-lhe uma penitência leve e mandou-o em paz, depois do que começou discretamente a reparar o assalto ao boticário. Ligado como estava pelo segredo da confissão não podia denunciá-lo às autoridades, mas deixá-lo impune também não podia ser. Finalmente conseguiu que tomado de remorso o homem se confessasse.

Deve-lhe ter recordado a idade avançada, o risco de ficar eternamente a assar nas labaredas do Inferno. E o boticário cedeu, fez testamento segundo as indicações do padre: os sobrinhos da mulher, tidos por "vermelhos" e infiéis não veriam um tostão. A fortuna, administrada pela Igreja, passava inteira para uma fundação que asseguraria o estudo de rapazes pobres, e distribuiria dotes a raparigas necessitadas. Condições sine qua non eram, além da assistência diária à missa, que eles fossem talentosos e elas virgens.

 

O rapaz sorriu, contou que tudo isso mudara há muitoou. Os bolseiros já não eram obrigados a ir à missa, ia quem queria, e para receber o dote as raparigas também não precisavam de ser virgens.