quarta-feira, julho 21

O Instinto animal

Querida Fieneke,

Porque mesmo nós próprios pouco sabemos dos arcanos em que se faz a associação dos pensamentos, não te sei dizer como é que o postal que escreveste de Dar-es-Salaam me levou
a pensar nos anúncios matrimoniais que se lêem na imprensa.
O facto de a fotografia ilustrar o acasalamento de dois rinocerontes junto de um baobá, tendo por fundo um espectacular poente africano, poderia levar um ingénuo a concluir que, embora de forma regressiva, a associação até se impõe: anúncio, contacto, cópula... Mas o processo do pensamento raramente segue trajectos assim rectilíneos. Nele, como também sabes, tudo são curvas, sobreposições, montanhas russas e enredos.
Seja como for, a imagem do rinoceronte fêmea que, indiferente, continua a pastar, enquanto o macho, febril de cio, a monta com o seu enorme peso, dando por certo os roncos que também na savana acompanham o acto, deve ter disparado qualquer coisa em mim sobre o desastre que é o desencontro dos desejos – sexuais e outros.
Daí, caprichoso, o pensamento foi saltando de recordações para ideias, de teorias para sonhos e, antes de me dar conta de como e porquê, estava eu a fantasiar um sistema mundial de simpatias. Através de um poderoso computador, cada um de nós tornaria conhecido o seu (razoável) desejo do momento, com forte probabilidade de que, algures no mundo, alguém se prestasse a satisfazê-lo.
Claro que, como em todas as fantasias optimistas, esse sistema não conheceria obstáculos, fronteiras ou impossibilidades: o desejo surgia, anunciava-se, era satisfeito, e passava--se ao candidato seguinte.
Foi então que me ocorreu que um sistema semelhante já de certo modo existe sob a forma dos anúncios matrimoniais.
Só que os anúncios matrimoniais, talvez por geralmente serem redigidos de forma lastimosa, raro alcançam o objectivo a que se destinam. Continuando o meu devaneio, imaginei
como seria útil que os governos estabelecessem repartições, onde funcionários habilitados na escrita se encarregassem, com frases escorreitas, de exprimir os desejos daqueles que
ardentemente procuram um cônjuge, uma companhia, a realização de um sonho ou a satisfação de um vício.
Tu, que também os lês, deves concordar que é cómico, mas ao mesmo tempo deprimente, darmo-nos conta de que há quem procure a felicidade lançando em público frases assim:
«Mulher espontânea, atraente, cinquenta e nove primaveras, deseja conhecer... Elegante, sério, desportista, boa posição, cavalheiro de sessenta e dois anos procura... Adoro campis-
mo, montanhismo, vela, hóquei em patins, desejaria encontrar alma irmã... Elegante, 1,72 m, culta, viajada, viúva há três anos, sei que em qualquer parte...»
Ao lê-los, e isto é apenas uma amostra diminuta dos jornais de ontem, uma voz íntima disse-me que não zombasse dos sonhos alheios. Que não risse, porque neste mundo tudo se paga. Mas olhando de novo o teu postal, e atirando os anún  cios para o cesto dos papéis, não pude reprimir um suspiro.
Que esbanjamento o gastar de tantos milhares de anos, para passarmos do saudável instinto animal a esta banalidade.