domingo, julho 4

Medos e pesadelos

Será exagerado dizer que certos medos ficam para a vida inteira, mas alguns sofremos que embora só se recordem de longe a longe, parecem manter intacta a capacidade de assustar, enquanto outros como que ganham estranhas qualidades.

Que o diga o Sebastião Campos, que tinha à volta de dez anos quando uma tarde foi roubar maçãs ao quintal do senhor Adriano, e sem a mínima ideia de como era possível aquilo acontecer, o velho estar de súbito à sua frente, quando nem por um segundo tirara os olhos da porta da cozinha, por onde ele poderia vir e a única que ligava a casa ao quintal.

Ao terror e às tremuras juntou-se a vergonha de sentir que mijava nas calças, e de que era incapaz de evitar os olhos do ancião, presos nos seus como se os tivesse amarrado com um poder sobrenatural, levando-o a recordar a fama de bruxo do vizinho, a quem a própria mãe  tinha pago para que deitasse um mau-olhado à afilhada da Celestina.

O que muito lhe faz espécie é que, passado mais de meio século, continua a ter momentos em que esse terror o assalta e de novo se vê miúdo, o senhor Adriano a materializar-se de repente, saindo do nada e uns instantes depois desfazer-se no ar.

Nos primeiros tempos de casado tinha falado disso à Margarida, mas logo reparou que além de não acreditar, ela o ouvia com o jeito de quem se aborrece e por fim desistiu. Estranho é que desde que ficou viúvo, faz agora dez anos, já umas quantas vezes Margarida lhe apareceu em sonhos, e embora nada diga parece encará-lo duma maneira que dá a entender que se arrepende, ou pelo menos ele assim o interpreta.

Do senhor Adriano nunca mais ouviu falar. Recorda que tempos depois daquele lado da rua as casas tinham sido demolidas, ele provavelmente mudara, e não deve ter durado muito, pois já então parecia centenário.

Contudo, ultimamente tem noites em que de súbito acorda e olha assustado em redor, temendo ver o senhor Adriano materializar-se, o que não voltou a acontecer, mas duma maneira ou doutra lhe parece iminente, e assombra como um prenúncio de desgraça.

Sem alguém com quem se possa abrir, o fantasma do ancião vai aos poucos e de tal modo dominando o seu dia-a-dia, que ao medo que sempre lhe causou se junta agora a ânsia de que, desaparecendo de vez, isso signifique que algo de mau está para  acontecer. Não receia a morte, pois mais dia menos dia a sua vez chegará. Teme sim que se repita o momento em que o senhor Adriano o surpreendeu, reviva o mesmo terror, volte a sofrer a vergonha de mijar nas calças.