domingo, julho 11

O nome é tudo

De muitos falecidos diz-se com sinceridade "Deus lhe dê paz!", mas alguém como o Carlos, que vai para três décadas entregou a alma ao Senhor, o mais provável é que nem nas alturas tenha mudado de feitio, e também lá desassossegue os que descuidados passam pela sua nuvem, ou se põem a jeito para que ele dê largas à irreprimível vontade de exagerar que recebeu no berço.

Mal não era, uma ou outra vez tornava-se cansativo, mas em compensação valia como espectáculo e muito se lhe perdoava. Igual nunca encontrei e dos com que desde então tenho convivido nenhum lhe chega aos calcanhares.

Falava-se dum ministro, conhecia-o ele desde a primária, era visita lá de casa, ainda dias atrás… Com um inesperado aparte o ministro desaparecia, o episódio seguinte era um jantar em casa do banqueiro X. onde estava também… E lá vinham a atriz Fulana, o advogado Sicrano, o cirurgião Beltrano, o milionário na lista da Forbes, os… Ah! E o número um do golf!

Com um misto de saudade e malícia recordo o nosso último encontro, que seria também o de que guardo uma memória viva e o revejo num dos seus impecáveis fatos de cheviote, incompreensível luxo de quem não se conhecia emprego, fortuna ou modo de vida que o justificasse.

Em geral começava por uma novidade espectacular, mas dessa vez mostrou-se singularmente comedido:

- Sabias que o meu irmão casou?

- Não sabia.

- Pois é verdade! Julgávamos que o Abel ia ficar para tio e afinal...

Fez a pausa que um actor usaria para criar suspense, esboçou um sorriso e encarou-me, dizendo que não tentasse, tinha a certeza de que nunca seria capaz de adivinhar.

-  Pois casou! Em Paris. Com uma Rothschild!

Da maneira como ele ao pronunciá-lo fitava o céu, o nome parecia elevar-se sobre as nossas cabeças e rebrilhar no alto com o fulgor do ouro e da fama.

Mais detalhes não tinha dado, a memória a recordar-me a imagem balofa do irmão mais velho, um arquitecto nos cinquenta, conhecido pela perícia no bilhar.

- E tu? Como vais?

Fiz um gesto de assim-assim e tínhamo-nos despedido.

De manhã acordei com a campainha do telefone, o Víctor às gargalhadas a querer que eu adivinhasse o que lhe tinha acontecido.

- Não faço ideia.

- Encontrei o irmão do Carlos, o gordo. Nunca me lembra o nome do gajo. O do bilhar.

- O Abel.

- Exactamente. Esse mesmo.

- O que casou agora com uma Rothschild.

- Já sabias?

- O Carlos contou-me.

Sufocado de riso o Víctor tosse, engasga-se, às sacudidelas consegue dizer:

- É Rothschild, sim senhor! Dona de uma loja de panos na Rue Saint Lazare.